Um arco-íris. A luz partindo-se em bocadinhos, sete cores que parecem milhões. É isso que está dentro do cisne. Pequenino. Cabe-lhe na mão.
Quase nada para uma vergonha tão grande.
Depois de ter aberto todos os caixotes, depois de encontrar nada, olhou para tudo o que salvou do mofo e a única coisa capaz de trazer de volta o passado é aquele cisne.
Depois de o tirar da caixa, depois de o olhar de frente, de lado, de cima, de baixo, atira-o ao chão.
O bicho resiste. Em vez de se partir, saltita no chão cimentado e um dos gatos, o mais novo, corre a ver o que é aquilo.
Jaquim decide-se. Pega numa pedra e, com inesperada força, parte o cisne, esmigalha-o, desfá-lo em fanicos, até só ficarem estilhaços, milhares de corzinhas reflectidas em milhões de pedacinhos de cristal.
Tinha de ser. Aquele arco-íris dentro do cisne era uma dor. Uma perfeição cristalina contendo o que de mais escuro há dentro do Zé.
Ele sabe. Ele coneçe o Zé. Se aquele cisne voltasse a aparecer nunca mais seriam amigos, tal é a vergonha.
É por o Jaquim conhecer todas as falhas do Zé que sente o dever cumprido olhando para os destroços de cristal. Uma certeza ilumina-o. Como é que nunca viu isto com tanta clareza?
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
sábado, 15 de novembro de 2008
43
Ele olha para os caixotes.
Estão ali numa aparente resignação, de quem sabe que não tem mais para ganhar na vida senão bolor. Jaquim sente-se derrotado logo à partida, só de olhar para eles.
Então é isto, tudo o que resta. Uma dúzia de caixotes, deixados para trás numa correria.
A mãe pensara que haveria tempo para voltar atrás, para os vir buscar. Cinco anos e nunca houvera tempo.
Jaquim puxa com o pé uma pedra para manter aberta a porta da arrecadação. Monta o banquinho do lado de fora. Em cima põe-lhe a tesoura, a fita-cola e os sacos plásticos. Os gatos, atraídos pelo barulhinho crocante dos sacos vêm cheira-los, não vá dar-se o caso de haver ali comida.
A madrinha deixou-o bem equipado. Ainda ele mal limpara as ramelas dos olhos e já ela o estava a chamar para comer. Tinha já uma sandes pronta num pires (manteiga, fiambre e queijo) e ao lado o leite com o ColaCao (ela ainda o conhece). À ponta da mesa estava aquele equipamento todo (tesoura e sacos e éteceteras), e ela estava vestida, pronta a sair.
- Vá, fica à vontade, filho, que eu tenho uns mandados.
E antes de arrefecer o leite, já ela tinha batido a porta e ido à vida.
Agora aqui está ele, com os caixotes.
O primeiro que puxa, com esforço, pesado como o raio, diz: COZINHA. Corta-lhe a fita-cola, abre-o, e não tarda a fechá-lo. Um dia pode ser que aquelas panelas lhe sirvam para alguma coisa. Quem sabe? Se alugar uma casa, se arranjar um emprego, se acreditar nesses planos todos...
O segundo diz: LIVROS. Este leva mais tempo a voltar a fechar. É que os livros chamam e pedem para ser abertos. Põe alguns de lado, dentro de um dos sacos plásticos (tão previdente, a madrinha) e volta a selar a tampa.
O terceiro diz: COISAS. E ele, sorrindo com a capacidade sintética da mãe, despacha a curiosidade com um rasgão decidido, mas detém-se subitamente quando abre as abas da caixa. O sorriso morre imediatamente. Aqui está o perigo, aquilo que ele se devia ter lembrado: que dentro de caixas de “coisas” há sempre coisas esquecidas capazes de nos fazer lembrar de outras coisas que seria melhor esquecer. Logo ao de cima, ainda dentro da transparente embalagem original, está o cisne. O estúpido cisne de cristal.
Estão ali numa aparente resignação, de quem sabe que não tem mais para ganhar na vida senão bolor. Jaquim sente-se derrotado logo à partida, só de olhar para eles.
Então é isto, tudo o que resta. Uma dúzia de caixotes, deixados para trás numa correria.
A mãe pensara que haveria tempo para voltar atrás, para os vir buscar. Cinco anos e nunca houvera tempo.
Jaquim puxa com o pé uma pedra para manter aberta a porta da arrecadação. Monta o banquinho do lado de fora. Em cima põe-lhe a tesoura, a fita-cola e os sacos plásticos. Os gatos, atraídos pelo barulhinho crocante dos sacos vêm cheira-los, não vá dar-se o caso de haver ali comida.
A madrinha deixou-o bem equipado. Ainda ele mal limpara as ramelas dos olhos e já ela o estava a chamar para comer. Tinha já uma sandes pronta num pires (manteiga, fiambre e queijo) e ao lado o leite com o ColaCao (ela ainda o conhece). À ponta da mesa estava aquele equipamento todo (tesoura e sacos e éteceteras), e ela estava vestida, pronta a sair.
- Vá, fica à vontade, filho, que eu tenho uns mandados.
E antes de arrefecer o leite, já ela tinha batido a porta e ido à vida.
Agora aqui está ele, com os caixotes.
O primeiro que puxa, com esforço, pesado como o raio, diz: COZINHA. Corta-lhe a fita-cola, abre-o, e não tarda a fechá-lo. Um dia pode ser que aquelas panelas lhe sirvam para alguma coisa. Quem sabe? Se alugar uma casa, se arranjar um emprego, se acreditar nesses planos todos...
O segundo diz: LIVROS. Este leva mais tempo a voltar a fechar. É que os livros chamam e pedem para ser abertos. Põe alguns de lado, dentro de um dos sacos plásticos (tão previdente, a madrinha) e volta a selar a tampa.
O terceiro diz: COISAS. E ele, sorrindo com a capacidade sintética da mãe, despacha a curiosidade com um rasgão decidido, mas detém-se subitamente quando abre as abas da caixa. O sorriso morre imediatamente. Aqui está o perigo, aquilo que ele se devia ter lembrado: que dentro de caixas de “coisas” há sempre coisas esquecidas capazes de nos fazer lembrar de outras coisas que seria melhor esquecer. Logo ao de cima, ainda dentro da transparente embalagem original, está o cisne. O estúpido cisne de cristal.
domingo, 21 de setembro de 2008
42
No seu sonho, Susana é loura. Pouco provável, que a família, de ambos os lados, tem raízes árabes e judaicas. Mas no sonho Susana é um anjo, e os anjos são louros, pois então.
Susana voa sobre a vila. Através dos seus olhos, Idália ergue-se do quintal e paira por cima do telhado. Fica ali um pouco, com pena de deixar a terra, mas o cheiro a carne guizada que vem da chaminé força-a a seguir em frente e em breve o seu olhar abrange a vila toda. Vila Velha. De telhas gastas, tão escura como o resto da planície.
O Alentejo é grande, muito grande, percebe agora. É tão extenso que mal se lhe vê o fim. Estica-se em negros campos sussurantes de espigas cansadas de serem espancadas pelo sol, e que à noite se submetem à mínima aragem.
Mas, prestando atenção, lá para o fundo, avista-se Espanha. É só um brilhozinho, como uma aldeola, mas ela sabe que é mais que isso. É um país inteiro, cheio de gente alegre e com Princesas e Reis. Mesmo daqui de longe, ouvem-se as palmas, gente a gritar olé e os tacões da princesa Letícia, que dança uma sevilhana. São muito mais alegres, os espanhóis. É para ali que Susana tem de ir. É isso que Idália diz a Susana, mesmo sem palavras. Porque Idália está dentro de Susana e basta pensar uma coisa para Susana perceber. E nem tem de dizer que está na hora de se separarem: Nem é preciso, entendem-se bem. Não é preciso um adeus.
Vai lá, filha, suspira Idália.
Há um momento em que tem medo, quando vê Susana pelo lado de fora e se apercebe que ela é só uma cabecinha com asas, esvoaçando irrequieta como um pardal. Frágil demais para voar o caminho todo até Espanha. Mas Susana sorri confiante e além disso há aquele cabelo louro, tão bonito que só pode ser uma benção de Deus. É isso que lhe arranca do peito o suspiro e o “Vai lá, filha.”
Infelizmente, nesta parte do sonho, Idália acorda. Irrita-se um bocadinho com o Senhor Manel que ressona lá do outro lado da cama, mas depois vê pelas frinchas das persianas que já é dia e lembra-se que tem umas cuecas no balde da lixívia que é preciso enxaguar. Levanta-se, lava-se, veste-se e sente que está quase alegre quando vai ao quintal buscar o balde.
Lá ao fundo, ao pé da cerca está a árvore, uma azinheira. Normalmente, quanto olha para ela, sente sempre uma inquietação. Houve uma altura em que pensava muito se as raízes da árvore podiam entrar na caixa, no caixãozinho. Como se a árvore pudesse comer Susana. Mas hoje sente que ela já não está ali. Susana já foi para Espanha há muito tempo, mesmo se o sonho só aconteceu esta noite.
Idália olha para a árvore como se a visse pela primeira vez. Agora pode olhar para ela, descansada. É uma árvore muito bonita, alta e frondosa. Uma pessoa até se podia sentar lá debaixo, a ouvir a rádio ou a cozer meias. Mas cheira um bocadinho mal. É pena. O cão vai sempre para ali mijar.
Susana voa sobre a vila. Através dos seus olhos, Idália ergue-se do quintal e paira por cima do telhado. Fica ali um pouco, com pena de deixar a terra, mas o cheiro a carne guizada que vem da chaminé força-a a seguir em frente e em breve o seu olhar abrange a vila toda. Vila Velha. De telhas gastas, tão escura como o resto da planície.
O Alentejo é grande, muito grande, percebe agora. É tão extenso que mal se lhe vê o fim. Estica-se em negros campos sussurantes de espigas cansadas de serem espancadas pelo sol, e que à noite se submetem à mínima aragem.
Mas, prestando atenção, lá para o fundo, avista-se Espanha. É só um brilhozinho, como uma aldeola, mas ela sabe que é mais que isso. É um país inteiro, cheio de gente alegre e com Princesas e Reis. Mesmo daqui de longe, ouvem-se as palmas, gente a gritar olé e os tacões da princesa Letícia, que dança uma sevilhana. São muito mais alegres, os espanhóis. É para ali que Susana tem de ir. É isso que Idália diz a Susana, mesmo sem palavras. Porque Idália está dentro de Susana e basta pensar uma coisa para Susana perceber. E nem tem de dizer que está na hora de se separarem: Nem é preciso, entendem-se bem. Não é preciso um adeus.
Vai lá, filha, suspira Idália.
Há um momento em que tem medo, quando vê Susana pelo lado de fora e se apercebe que ela é só uma cabecinha com asas, esvoaçando irrequieta como um pardal. Frágil demais para voar o caminho todo até Espanha. Mas Susana sorri confiante e além disso há aquele cabelo louro, tão bonito que só pode ser uma benção de Deus. É isso que lhe arranca do peito o suspiro e o “Vai lá, filha.”
Infelizmente, nesta parte do sonho, Idália acorda. Irrita-se um bocadinho com o Senhor Manel que ressona lá do outro lado da cama, mas depois vê pelas frinchas das persianas que já é dia e lembra-se que tem umas cuecas no balde da lixívia que é preciso enxaguar. Levanta-se, lava-se, veste-se e sente que está quase alegre quando vai ao quintal buscar o balde.
Lá ao fundo, ao pé da cerca está a árvore, uma azinheira. Normalmente, quanto olha para ela, sente sempre uma inquietação. Houve uma altura em que pensava muito se as raízes da árvore podiam entrar na caixa, no caixãozinho. Como se a árvore pudesse comer Susana. Mas hoje sente que ela já não está ali. Susana já foi para Espanha há muito tempo, mesmo se o sonho só aconteceu esta noite.
Idália olha para a árvore como se a visse pela primeira vez. Agora pode olhar para ela, descansada. É uma árvore muito bonita, alta e frondosa. Uma pessoa até se podia sentar lá debaixo, a ouvir a rádio ou a cozer meias. Mas cheira um bocadinho mal. É pena. O cão vai sempre para ali mijar.
domingo, 15 de junho de 2008
41
Lençóis lavados.
Alvos. Quebradiços quase. Passados a ferro e esticados num excesso de zelo a significar carinho ou amor. É quase inumano dormir numa cama destas, o colchão duro como o chão, nunca moldado por um corpo. Tem poucas visitas, a menina Ivone, mesmo que tenha um quarto para elas. Ou poucas visitas que fiquem a passar a noite.
Custam a passar, as noites.
As noites do Jaquim.
As noites da menina Ivone.
No quarto do retrato do avô Celestino, o Jaquim despe-se à pressa. Há um frio acumulado nas paredes. Passou para os lençóis, nota ele assim que sobe para a cama. Arrepende-se de não ter trazido um pijama. Mas depois lembra-se que já não tem pijamas. Cresceu demais para os que tinha e, claro, desde que passou a ser ele a comprar a sua própria roupa, esquece-se de comprar pijamas. Já cuecas e peúgas, sabe deus.
Leva um pé ao nariz para averiguar o estado deste par que tem calçado. Menos mal. Ainda pode dar para amanhã. Não trouxe muitas.
De certeza que a madrilha lhas lavava se lhe pedisse, mas não quer dar trabalho. O Jaquim não é de dar trabalho a ninguém. Em casa da tia aprendeu bem isso. A apagar-se. É o mínimo que se pode fazer quando se mora com alguém por favor.
Enfia-se na cama. Os lençóis estão gelados, o cobertor pesa uma tonelada e de certeza que vai levar umas horas a aquecer. Deixa-se ficar imóvel, evitando tocar nas partes frias da cama.
O sono virá quando vier. Há muitas coisas em que quer pensar e outras em que não quer pensar, antes de dormir, mas há uma sempre presente. A noção de que tem de começar a viver.
Diz-lhe a razão de que isso tem de começar pelo emprego, pelo dinheiro. É que nos últimos anos tem sido esta a sua vida. Uma cama fria que não lhe pertence.
Alvos. Quebradiços quase. Passados a ferro e esticados num excesso de zelo a significar carinho ou amor. É quase inumano dormir numa cama destas, o colchão duro como o chão, nunca moldado por um corpo. Tem poucas visitas, a menina Ivone, mesmo que tenha um quarto para elas. Ou poucas visitas que fiquem a passar a noite.
Custam a passar, as noites.
As noites do Jaquim.
As noites da menina Ivone.
No quarto do retrato do avô Celestino, o Jaquim despe-se à pressa. Há um frio acumulado nas paredes. Passou para os lençóis, nota ele assim que sobe para a cama. Arrepende-se de não ter trazido um pijama. Mas depois lembra-se que já não tem pijamas. Cresceu demais para os que tinha e, claro, desde que passou a ser ele a comprar a sua própria roupa, esquece-se de comprar pijamas. Já cuecas e peúgas, sabe deus.
Leva um pé ao nariz para averiguar o estado deste par que tem calçado. Menos mal. Ainda pode dar para amanhã. Não trouxe muitas.
De certeza que a madrilha lhas lavava se lhe pedisse, mas não quer dar trabalho. O Jaquim não é de dar trabalho a ninguém. Em casa da tia aprendeu bem isso. A apagar-se. É o mínimo que se pode fazer quando se mora com alguém por favor.
Enfia-se na cama. Os lençóis estão gelados, o cobertor pesa uma tonelada e de certeza que vai levar umas horas a aquecer. Deixa-se ficar imóvel, evitando tocar nas partes frias da cama.
O sono virá quando vier. Há muitas coisas em que quer pensar e outras em que não quer pensar, antes de dormir, mas há uma sempre presente. A noção de que tem de começar a viver.
Diz-lhe a razão de que isso tem de começar pelo emprego, pelo dinheiro. É que nos últimos anos tem sido esta a sua vida. Uma cama fria que não lhe pertence.
sexta-feira, 13 de junho de 2008
40
Basta que a noite caia para que Vila Velha se cubra de silêncio. Claro que em frente ao café, até à meia-noite há sempre um par de bêbados. E há a mota ocasional, acelerando a qualquer hora da noite, de escape rasgado. Mas de resto, fecha-se o mundo em casa. Até as portadas, os estores das janelas se fecham, mal deixando transpirar o brilho dos concursos, noticiários e novelas dos televisores. Ficam as ruas abandonadas ao tremor das lâmpadas fracas que a junta de freguesia espalhou, esparsas, pelas esquinas.
Ele tem um sítio. Só seu, que não é do tempo do Jaquim, mas recente. É por baixo do depósito da água. Aquilo antes tinha um muro, mas parte foi abaixo e agora entra-se na boa. É quase um baldio, mas há uns degraus de cimento e ele senta-se ali encostado ao pilar.
Afinal não disseram grande coisa. Mas foi um bom dia. Melhor que o normal, pelo menos. Com o Jaquim ele é mais ele. Mais Zé, menos Zé do talho.
Foi pena afinal o Jaquim não querer ir ter com o pessoal ao café. Cansaço, disse. Fica para amanhã.
Na boa.
Este sítio. Daqui vê-se até muito longe, é o sítio mais alto.
Em noites destas o céu está cheio de estrelas e a terra também.
O que é que o Zé ou o Zé do talho ou o Zézinho importam aqui? Aqui é só ele e o cão.
- Anda cá, bicho. Larga essa merda!
E ele vem. Senta-se aos seus pés a arfar e a olhar em redor. Deixa-se afagar. Coçar na nuca. E claro, os dedos logo param o coçanço quando encontram uma carraça.
Ó, bicho dum raio!
O Zé saca dos cigarros e acende um, puxa umas passas.
E olha as estrelas derramadas por todo o lado. A planície negra com as suas luminosas carraças humanas. Algumas das terreolas ele sabe quais são. Sabe o seu nome. Já as estrelas brilham para ele anónimas. Nunca aprendeu constelações nem sabe onde fica Órion. Talvez por isso prefira as estrelas do céu às da terra.
O cão está quieto. Expectante. Sabe o que se segue. O horror da coisa. Mas sabe que ao cheiro feio e à pontada de dor se segue o alívio.
Vale a pena esperar o alívio.
E afinal até é rápido. O Zé já fez aquilo tanta vez. Abre-lhe o pêlo até encontrar a puta. E depois, zás, dá-lhe com o cigarro e ela cai, fica esperneando no chão. Nunca muito tempo, porque vem logo o sapato do Zé.
O Zé espanta-se sempre com a quantidade de sangue que as putas têm.
Puxa mais uma passa, mas o cigarro acaba por ter o mesmo destino da carraça.
Agora sim, há paz no mundo.
Espera e tudo se acalma. Ele, o cão, a noite.
Enche os pulmões de solidão e estrelas sem nome.
Adia o regresso a casa o mais que pode.
Não é nunca na cama que encontra sossego.
Ele tem um sítio. Só seu, que não é do tempo do Jaquim, mas recente. É por baixo do depósito da água. Aquilo antes tinha um muro, mas parte foi abaixo e agora entra-se na boa. É quase um baldio, mas há uns degraus de cimento e ele senta-se ali encostado ao pilar.
Afinal não disseram grande coisa. Mas foi um bom dia. Melhor que o normal, pelo menos. Com o Jaquim ele é mais ele. Mais Zé, menos Zé do talho.
Foi pena afinal o Jaquim não querer ir ter com o pessoal ao café. Cansaço, disse. Fica para amanhã.
Na boa.
Este sítio. Daqui vê-se até muito longe, é o sítio mais alto.
Em noites destas o céu está cheio de estrelas e a terra também.
O que é que o Zé ou o Zé do talho ou o Zézinho importam aqui? Aqui é só ele e o cão.
- Anda cá, bicho. Larga essa merda!
E ele vem. Senta-se aos seus pés a arfar e a olhar em redor. Deixa-se afagar. Coçar na nuca. E claro, os dedos logo param o coçanço quando encontram uma carraça.
Ó, bicho dum raio!
O Zé saca dos cigarros e acende um, puxa umas passas.
E olha as estrelas derramadas por todo o lado. A planície negra com as suas luminosas carraças humanas. Algumas das terreolas ele sabe quais são. Sabe o seu nome. Já as estrelas brilham para ele anónimas. Nunca aprendeu constelações nem sabe onde fica Órion. Talvez por isso prefira as estrelas do céu às da terra.
O cão está quieto. Expectante. Sabe o que se segue. O horror da coisa. Mas sabe que ao cheiro feio e à pontada de dor se segue o alívio.
Vale a pena esperar o alívio.
E afinal até é rápido. O Zé já fez aquilo tanta vez. Abre-lhe o pêlo até encontrar a puta. E depois, zás, dá-lhe com o cigarro e ela cai, fica esperneando no chão. Nunca muito tempo, porque vem logo o sapato do Zé.
O Zé espanta-se sempre com a quantidade de sangue que as putas têm.
Puxa mais uma passa, mas o cigarro acaba por ter o mesmo destino da carraça.
Agora sim, há paz no mundo.
Espera e tudo se acalma. Ele, o cão, a noite.
Enche os pulmões de solidão e estrelas sem nome.
Adia o regresso a casa o mais que pode.
Não é nunca na cama que encontra sossego.
domingo, 8 de junho de 2008
39
- Madrinha?
- Sim?
- Porque é minha madrinha?
Depois de o Zé se ir, quando já voltaram à cozinha e já é altura para um copo de leite quente. Antes de dormir. Agora, pensa ela. Afinal mais cedo que tarde.
Procura o passador para lhe coar a pele do leite e vai respondendo, como se nada fosse.
- Foi a tua mãe que me convidou, filho.
- Mas porquê a si?
- Não sei. Se calhar porque ela não conhecia muita gente cá na altura.
- Ela não estava naquelas fotografias.
O Jaquim não diz a que fotografias se refere mas ela percebe que são as do baptizado do Zé. Pois claro.
- Não. A tua mãe teve de ficar em casa nesse dia, se bem me lembro. Estava grávida de ti e tu não te estavas a portar bem. Sim, até lhe fui levar uma fatia de bolo lá a casa...
A caneca de leite muda de mãos, pronta a beber, assim que arrefeça.
- A minha tia nunca lhe perdoou. Agora... quer dizer, desde que... desde que a minha mãe morreu, só fala da doença como se fosse um castigo. Que se não tivesse vindo para cá isso não lhe tinha acontecido.
A testa da menina Ivone enruga-se. As coisas que se dizem às crianças! Ele há com cada uma...
- Bem, isso, a tua tia... Eu não sou de dizer mal das pessoas mas, sinceramente... Nem ao funeral do teu pai veio.
- Porquê?
A menina Ivone suspira. De repente dá-lhe um grande cansaço. Afinal de que serve estar a remexer naquelas coisas? Estende o braço até ao outro lado da mesa e põe a sua mão sobre a do Jaquim, que agarra a caneca do leite.
- Ouve, filho. O teu pai era um bom homem. E a tua mãe amava-o. Foi por isso que veio para cá. O resto... o resto, foi tudo o desgosto. Vai lá alguém perceber as razões dele...
- Ele deixou alguma coisa? Uma carta, um bilhete?
- Não, filho, não. Deixou só um grande desgosto. Daqueles de que nem vale a pena falar...
- Sim?
- Porque é minha madrinha?
Depois de o Zé se ir, quando já voltaram à cozinha e já é altura para um copo de leite quente. Antes de dormir. Agora, pensa ela. Afinal mais cedo que tarde.
Procura o passador para lhe coar a pele do leite e vai respondendo, como se nada fosse.
- Foi a tua mãe que me convidou, filho.
- Mas porquê a si?
- Não sei. Se calhar porque ela não conhecia muita gente cá na altura.
- Ela não estava naquelas fotografias.
O Jaquim não diz a que fotografias se refere mas ela percebe que são as do baptizado do Zé. Pois claro.
- Não. A tua mãe teve de ficar em casa nesse dia, se bem me lembro. Estava grávida de ti e tu não te estavas a portar bem. Sim, até lhe fui levar uma fatia de bolo lá a casa...
A caneca de leite muda de mãos, pronta a beber, assim que arrefeça.
- A minha tia nunca lhe perdoou. Agora... quer dizer, desde que... desde que a minha mãe morreu, só fala da doença como se fosse um castigo. Que se não tivesse vindo para cá isso não lhe tinha acontecido.
A testa da menina Ivone enruga-se. As coisas que se dizem às crianças! Ele há com cada uma...
- Bem, isso, a tua tia... Eu não sou de dizer mal das pessoas mas, sinceramente... Nem ao funeral do teu pai veio.
- Porquê?
A menina Ivone suspira. De repente dá-lhe um grande cansaço. Afinal de que serve estar a remexer naquelas coisas? Estende o braço até ao outro lado da mesa e põe a sua mão sobre a do Jaquim, que agarra a caneca do leite.
- Ouve, filho. O teu pai era um bom homem. E a tua mãe amava-o. Foi por isso que veio para cá. O resto... o resto, foi tudo o desgosto. Vai lá alguém perceber as razões dele...
- Ele deixou alguma coisa? Uma carta, um bilhete?
- Não, filho, não. Deixou só um grande desgosto. Daqueles de que nem vale a pena falar...
sexta-feira, 6 de junho de 2008
38
Sorrisos de fotografia. Para mais tarde recordar a vida como se gostaria que tivesse sido. Não é talvez falta de sinceridade mas mais uma representação de um desejo. Vontade de dizer, neste dia fomos felizes. Gostaríamos de ter sido felizes. E por isso sorri-se para a máquina.
Sentaram-se na sala, depois do jantar e, a pedido do Jaquim, a menina Ivone abriu os armários e de entre a sua colecção de albuns tirou um onde havia mais fotografias do baptizado dele. Eram só quatro, afinal, e nenhuma com o pai dele, ao contrário do que esperava. Só ele, aquele bebé vestido de branco, seguro em braços desconhecidos. Quem era aquela gente que sorria sem verdadeira vontade? Amigas da mãe que não duraram muito, ou gente da vila que depois, mais tarde na vida, tivera mais que fazer.
A menina Ivone, sentada, mãos sobre as coxas como quem espera um sobressalto, olha os rapazes que desfolham outras imagens do passado. Imagina o que se pode seguir, mas espera, com mórbida curiosidade, a ver que voltas dará a vida.
O album é grande. Tem muita gente, muitos anos, casamentos e baptizados. Eles riem-se ocasionalmente das modas. Chapéus com véu dos anos 60, calças à boca de sino dos anos 70, folhos dourados dos anos 80. Alguma surpresa quando vêm versões novas da gente velha de Vila Velha.
Depois, claro, chegam as fotos do baptizado do Zé. Estão no mesmo album, como ela bem sabe. Umas seis páginas. E ela aguarda. Essas páginas são desfolhadas mais lentamente. Ela nota como o olhar do Jaquim procura.
Procura.
Procura.
E encontra, pois então. Está ali. Ainda nessa tarde ela se lembrou, pouco depois do Manel sair e, para confirmar, foi abrir o album. Lá estava. Fechou-o, fechou os olhos e suspirou. E quando o Jaquim, nessa mesma noite, lhe pediu para ver o album, ela decidiu, pois que se desenrole o destino.
Mas afinal, embora se detenha nas fotos, o Jaquim não diz nada, não faz perguntas.
Talvez seja por causa do Zé. O Zé era um bébé lindo. Mesmo agora, de unhas encardidas de sangue, dedos feridos de facas, mas delicados e respeitosos no virar das páginas do vetusto album de memórias fotográficas, tem uma inocência nos olhos que ninguém se atreveria a quebrar.
Sim, inocência. A menina Ivone sabe bem quanto vale.
Nos olhos do Jaquim vê bailar a pergunta, embora fique só ali, sem se abeirar dos lábios. Mas os dedos deslizam-lhe inconscientemente para a foto, roçam ligeiramente o sorriso largo do pai. A felicidade genuina que mostra, segurando nos braços o Zé, seu afilhado.
Sentaram-se na sala, depois do jantar e, a pedido do Jaquim, a menina Ivone abriu os armários e de entre a sua colecção de albuns tirou um onde havia mais fotografias do baptizado dele. Eram só quatro, afinal, e nenhuma com o pai dele, ao contrário do que esperava. Só ele, aquele bebé vestido de branco, seguro em braços desconhecidos. Quem era aquela gente que sorria sem verdadeira vontade? Amigas da mãe que não duraram muito, ou gente da vila que depois, mais tarde na vida, tivera mais que fazer.
A menina Ivone, sentada, mãos sobre as coxas como quem espera um sobressalto, olha os rapazes que desfolham outras imagens do passado. Imagina o que se pode seguir, mas espera, com mórbida curiosidade, a ver que voltas dará a vida.
O album é grande. Tem muita gente, muitos anos, casamentos e baptizados. Eles riem-se ocasionalmente das modas. Chapéus com véu dos anos 60, calças à boca de sino dos anos 70, folhos dourados dos anos 80. Alguma surpresa quando vêm versões novas da gente velha de Vila Velha.
Depois, claro, chegam as fotos do baptizado do Zé. Estão no mesmo album, como ela bem sabe. Umas seis páginas. E ela aguarda. Essas páginas são desfolhadas mais lentamente. Ela nota como o olhar do Jaquim procura.
Procura.
Procura.
E encontra, pois então. Está ali. Ainda nessa tarde ela se lembrou, pouco depois do Manel sair e, para confirmar, foi abrir o album. Lá estava. Fechou-o, fechou os olhos e suspirou. E quando o Jaquim, nessa mesma noite, lhe pediu para ver o album, ela decidiu, pois que se desenrole o destino.
Mas afinal, embora se detenha nas fotos, o Jaquim não diz nada, não faz perguntas.
Talvez seja por causa do Zé. O Zé era um bébé lindo. Mesmo agora, de unhas encardidas de sangue, dedos feridos de facas, mas delicados e respeitosos no virar das páginas do vetusto album de memórias fotográficas, tem uma inocência nos olhos que ninguém se atreveria a quebrar.
Sim, inocência. A menina Ivone sabe bem quanto vale.
Nos olhos do Jaquim vê bailar a pergunta, embora fique só ali, sem se abeirar dos lábios. Mas os dedos deslizam-lhe inconscientemente para a foto, roçam ligeiramente o sorriso largo do pai. A felicidade genuina que mostra, segurando nos braços o Zé, seu afilhado.
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