domingo, 21 de setembro de 2008

42

No seu sonho, Susana é loura. Pouco provável, que a família, de ambos os lados, tem raízes árabes e judaicas. Mas no sonho Susana é um anjo, e os anjos são louros, pois então.
Susana voa sobre a vila. Através dos seus olhos, Idália ergue-se do quintal e paira por cima do telhado. Fica ali um pouco, com pena de deixar a terra, mas o cheiro a carne guizada que vem da chaminé força-a a seguir em frente e em breve o seu olhar abrange a vila toda. Vila Velha. De telhas gastas, tão escura como o resto da planície.
O Alentejo é grande, muito grande, percebe agora. É tão extenso que mal se lhe vê o fim. Estica-se em negros campos sussurantes de espigas cansadas de serem espancadas pelo sol, e que à noite se submetem à mínima aragem.
Mas, prestando atenção, lá para o fundo, avista-se Espanha. É só um brilhozinho, como uma aldeola, mas ela sabe que é mais que isso. É um país inteiro, cheio de gente alegre e com Princesas e Reis. Mesmo daqui de longe, ouvem-se as palmas, gente a gritar olé e os tacões da princesa Letícia, que dança uma sevilhana. São muito mais alegres, os espanhóis. É para ali que Susana tem de ir. É isso que Idália diz a Susana, mesmo sem palavras. Porque Idália está dentro de Susana e basta pensar uma coisa para Susana perceber. E nem tem de dizer que está na hora de se separarem: Nem é preciso, entendem-se bem. Não é preciso um adeus.
Vai lá, filha, suspira Idália.
Há um momento em que tem medo, quando vê Susana pelo lado de fora e se apercebe que ela é só uma cabecinha com asas, esvoaçando irrequieta como um pardal. Frágil demais para voar o caminho todo até Espanha. Mas Susana sorri confiante e além disso há aquele cabelo louro, tão bonito que só pode ser uma benção de Deus. É isso que lhe arranca do peito o suspiro e o “Vai lá, filha.”
Infelizmente, nesta parte do sonho, Idália acorda. Irrita-se um bocadinho com o Senhor Manel que ressona lá do outro lado da cama, mas depois vê pelas frinchas das persianas que já é dia e lembra-se que tem umas cuecas no balde da lixívia que é preciso enxaguar. Levanta-se, lava-se, veste-se e sente que está quase alegre quando vai ao quintal buscar o balde.
Lá ao fundo, ao pé da cerca está a árvore, uma azinheira. Normalmente, quanto olha para ela, sente sempre uma inquietação. Houve uma altura em que pensava muito se as raízes da árvore podiam entrar na caixa, no caixãozinho. Como se a árvore pudesse comer Susana. Mas hoje sente que ela já não está ali. Susana já foi para Espanha há muito tempo, mesmo se o sonho só aconteceu esta noite.
Idália olha para a árvore como se a visse pela primeira vez. Agora pode olhar para ela, descansada. É uma árvore muito bonita, alta e frondosa. Uma pessoa até se podia sentar lá debaixo, a ouvir a rádio ou a cozer meias. Mas cheira um bocadinho mal. É pena. O cão vai sempre para ali mijar.