terça-feira, 8 de abril de 2008

27

- O que é que queres daqui?
- Atão, é assim que recebe as visitas?
- Visita? Não deve estar a soprar bom vento... Entra lá... E limpa os pés no tapete, que acabei de passar cera no chão não há dez minutos!
- Ainda cheira. Teve a fazer bolos?
- Tive. E tivesse sabido que vinhas “de visita” tinha arranjado uns foguetes para compôr a festa. A que se deve tamanha honra?
- Você não perdoa...
- Ó filho... eu sou quase santa mas ainda não sou Jesus. Anda lá!
Vira-lhe as costas e volta para a cozinha. O Manel do talho segue-a pelo corredor afora, um pouco surpreso por aquela casa lhe parecer tão apertada de repente.
- Esta casa parece que encolheu.
- Não tenho reparado. Se calhar ando a encolher com ela. Já tu, não páras de crescer... O que é que o médico diz disso?
- Isto já não tem remédio - diz ele sorrindo e acariciando a pança.
Mas ele estava era a lembrar-se de quando andava de triciclo naquele corredor. Do tempo em que os obstáculos eram os pés dos armários e não os fetos colossais que agora lhe atrapalham a passagem como fosse entrar na selva escura.
A idéia que tem daquela casa é do tempo em que viveu nela. O sorriso que ainda lhe fica na cara por algum tempo não tem nada a ver com a conversa nem com o seu orgulho (fingido) na barriga. Tem a ver com memórias de uma infância particularmente feliz. Aquele padrão dos azulejos do corredor conhece ele de cor. Por ali rodou o triciclo, marcharam soldados de chumbo, navegaram barcos de papel.
Sentam-se os dois à mesa da cozinha. Ele na esperança de que a menina Ivone lhe sirva bolo, mas ela senta-se também, frente a ele, braços cruzados ao peito, à espera.
- Lembra-se de quando eu passava aqui as tardes? Já nessa altura estava sempre a fazer bolos...
- Pois sim, deixa-te lá de conversas, que eu tenho mais que fazer. O que é que tu queres?

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