quarta-feira, 9 de abril de 2008

28

É só um momento. Um minúsculo mini-nano-segundo, mas ainda lá está. Ainda a sente. A dor. Faca tão antiga que devia ter ferrugem, mas não. É imediata, aguda e nunca fica romba. Nunca perde a pontaria, acerta em cheio no coração.
Mas passa.
Passa num instante.
É ferida curada, mesmo que doa. E nunca, nunca mais, ela vai permitir que se volte a abrir.
Ela lembra-se. Claro que se lembra. Como se fosse possível esquecer... Oh, tamanha tolice de juventude!
Um bébé tão lindo, dizia toda a gente. E assim era, mesmo que aos cinco anos já ninguém seja bébé. Era o sorriso e os olhos deslumbrados do Manel, Manelinho, que conquistavam toda a gente.
O tio Celestino montava-o nos ombros e lá iam os dois, rua abaixo. A criança mais linda, rindo aos ombros do homem mais lindo. Não haviam todos de os mirar... Acenos de moças e matronas babadas. Inveja dos homens. O mundo era deles naqueles momentos.
Dizem que Deus leva os que ama. De certeza. Como não havia Deus de se enamorar de Celestino? Talvez até tenha sido ele a enviar um anjo para mexer nos travões e encaminhar-lhe o carro para a ribeira... Ou feito um pacto com o Diabo: deixa-me o Celestino e a alma da Ivone é tua, para atormentares.
Isso também era quase certo. Que no dia em que o Manel entrara naquela casa, fora na qualidade de intrumento do Demo. Mas quem poderia saber isso ao olhar para aqueles caracóis, para aquelas bochechinhas rosadas? E aqueles olhos tristes que continuavam a perguntar, onde está o papá? Não faria qualquer um o que fosse preciso para os voltar a ver iluminados?

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