domingo, 20 de abril de 2008

32

- Achaste-a?
Ele assente.
- Deixa ver.
A menina Ivone estende a mão e espera. E ele acaba por ceder. Tudo se conspurca, tarde ou cedo nesta vida, afinal de contas. Mas ela, embora olhe um demorado minuto para a fotografia, não diz nada quando lha devolve. Vira-lhe as costas e vai para o lava-louças.
- Isto tem um preço... - diz ela depois.
- É só uma fotografia. Acha que isto vale alguma coisa?
- Tu lá sabes o que vale. Nem sei como é que a Luísa não a queimou.
- A Luísa era uma boa mulher...
- Boa demais. Mas se julgas que te perdoou, andaste bem enganado. Soube foi conter o rancor. Dever ter sido isso que se transformou naquele cancro... Não faz bem a ninguém conter tanta coisa azeda no peito.
- Então o que é que quer? Diga lá...
- O Zé. Quando é que lhe começas a pagar o que lhe é devido?
- Outra vez essa história?! Mas quando é que vocês deixam de me azucrinar com isso? Acha que ando aí a nadar em dinheiro? E falta-lhe alguma coisa, falta?!
A voz do senhor Manel já se está a erguer, pronta para a luta. Mas a menina Ivone ergue solenemente a palma de uma mão e ele cala-se.
- Vais fazer só uma coisa. Quando ele te disser que se vai embora, tu pagas-lhe o que lhe deves e deixa-lo ir.
- Ir-se embora?! Que raio de conversa é essa? O que é você lhe anda a meter na cabeça?
A menina Ivone suspira.
- Sempre foste um grande tosco. Eu lá preciso de andar a armar intrigas? O que é que achas que vai acontecer no fim desta semana, quando o Jaquim voltar para Lisboa?
O senhor Manel olha para ela sem conseguir responder.
- Porque é que o Armando se mudou para cá? Para ser veterinário num matadouro neste fim de mundo? Não achas que, pela mesma ordem de idéias, o teu filho prefere ser talhante em Lisboa?
Ele fica petrificado. Primeiro muito pálido, depois corado até à raiz dos cabelos.
- Você cale-se, sua puta. Você cale-se...
Ela fixa-o nos olhos. Sem rasto de medo.
- É esse o preço: deixa-o ir. Quando ele quiser ir, deixa-o.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

31

Uma fotografia, para mais tarde recordar. Vinte e cinco anos mais tarde, para ser mais exacto. Ou mais ou menos, já não sabe bem.
Ele, vejam lá, ainda com cabelo, ainda sem barriga. Bons tempos.
...bons tempos...
E o Armando, sorrindo.
Não havia de sorrir, o cabrão?
Tinha sido um bom dia, depois de uma boa noite, e a vida no exército era fácil. Já tinham acabado as guerras e as revoluções. E ali estavam eles, dois alegres magalas, frente ao quartel, vivendo os bons tempos.
É disso que ele se quer lembrar, dos bons tempos. Está tudo ali naquela fotografia, no cigarro que uma das mãos dele segura, na mão do Armando sobre o seu ombro.
O mal dos bons tempos é uma pessoa não saber com certeza se os tempos são os bons quando os vive. Com os maus é mais fácil, nota-se logo. Mas é preciso viver uma merda de cinquenta anos para depois conseguir olhar para trás e perceber que afinal só dois ou três é que valeram a pena e o resto andou tudo pelo assim-assim.
Não é que ele seja um desses mariconços nostálgicos. Cagando e andando, é mais o seu lema. Mas a alguma memória tem uma pessoa de se agarrar. Nem que seja uma fotografia roubada. Que nem é roubo, convence-se, enquanto fecha a caixa o melhor que a fita-cola ainda deixa. Aquilo é mais seu que do Jaquim. O Armando foi sempre mais seu do que de qualquer outra pessoa. E essa é uma dádiva que ele, desde que olhou para trás e viu quais tinham sido os bons tempos, aprendeu a apreciar. Mesmo que agora já seja um bocadinho tarde. Vinte e cinco anos, mais ou menos.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

30

Ela fica sentada, a menina Ivone, ouvindo o barulho que ele faz arredando caixas na arrecadação do quintal. Sentada à mesa, rodeada de bolos e a pensar em coisas que não se dizem.
É tarde para se livrar da vida pelas próprias mãos, como fez o Armando. Homem esperto. Mas se aguentou até agora, pouco mais há-de faltar.
Um dos gatos entra na cozinha, não sem primeiro se roçar na ombreira da porta, na perna de uma cadeira. Só depois acede a ser coçado debaixo do queixo. Vem refugiar-se da inusitada usurpação do seu território. Não que a cozinha lhe desagrade. Mas a esta hora o quintal é por direito seu. Está indignado. Mia. A menina Ivone entende que ele tem fome e, sem vontade de se levantar, pega numa das popias sobre a mesa, parte um pedacinho e estende-lho.
O gato só precisa de cheirar uma vez para perceber que aquilo é comida que não lhe interessa. Levanta o rabo ainda mais ofendido e, sem cerimónias, regressa ao quintal.
O instinto dos animais é uma coisa estranha e ela nunca o compreendeu. Mas fora o fascínio. Um pitada de vaidade. E talvez inocência. Sim, talvez. Se deixara que o miúdo lhe chupasse os mamilos fora porque gostara de se imaginar mamã. Como se a sesta fosse uma brincadeira de faz-de-conta. E havia qualquer coisa de certo naquilo. Ela enrolava-se à volta dele e havia paz. As brincadeiras dele eram tão selvagens… Como são sempre as brincadeiras dos miúdos, mas chegava à hora da sesta e ele ainda tinha o coração a bater, das correrias e não acalmava. Por isso ela se deitara, abraçara-o e cantara uma cantiga.
Oliveirinha da serra.
E depois tinham cantado outra, juntos.
Toda a vida fui pastor.
Era um abraço quente, muito bom.
Toda a vida guardei gado.
Ao dezasseis anos ela já tinha os seios fartos. Aos cinco anos, com certeza deve ter sido o instinto que o guiou. Uma memória.
Tenho uma nódoa no peito, ai, ai…

sexta-feira, 11 de abril de 2008

29

Ao fundo do quintal. Foi ali, na arrecadação que as arrumaram, as caixas. Uma coisa temporária, até se poder fazer uma mudança como é devido. Mas tinham ficado. Foram ficando. Quatro anos.
Eram principalmente livros, que no urbano apartamento da irmã da professora não havia lugar para eles. Já para a doença, o miúdo e outros fardos sabe Deus, quanto mais para livros. E por isso tinham levado só as malas, roupas e pouco mais.
Quase todos os caixotes dizem “livros”. Mas há um que diz “cozinha”, outro “brinquedos”. Assim se resumem vidas deixadas para trás.
Há ainda outro, o que ele procurava, mais antigo, parece, pelo grau de amarelecimento e macia humidade do cartão. Vinte anos, quase, calcula ele. Saberia que era este, sem precisar de ler as tímidas letras escritas num canto: “Armando”.
O senhor Manel pára um momento para recuperar o fôlego. São pesados, os cabrões dos livros, as putas das caixas. Senta-se numa e fica a olhar para esta.
Passa os dedos pela fita-cola. Era da boa. Está ali para durar. Pelo menos até ele a arrancar e deixar um rasto de violação. Mas que se lixe. Encontra-lhe o fim e começa a puxar.
Abrir a caixa leva o tempo de três batidas de coração. Aceleradas.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

28

É só um momento. Um minúsculo mini-nano-segundo, mas ainda lá está. Ainda a sente. A dor. Faca tão antiga que devia ter ferrugem, mas não. É imediata, aguda e nunca fica romba. Nunca perde a pontaria, acerta em cheio no coração.
Mas passa.
Passa num instante.
É ferida curada, mesmo que doa. E nunca, nunca mais, ela vai permitir que se volte a abrir.
Ela lembra-se. Claro que se lembra. Como se fosse possível esquecer... Oh, tamanha tolice de juventude!
Um bébé tão lindo, dizia toda a gente. E assim era, mesmo que aos cinco anos já ninguém seja bébé. Era o sorriso e os olhos deslumbrados do Manel, Manelinho, que conquistavam toda a gente.
O tio Celestino montava-o nos ombros e lá iam os dois, rua abaixo. A criança mais linda, rindo aos ombros do homem mais lindo. Não haviam todos de os mirar... Acenos de moças e matronas babadas. Inveja dos homens. O mundo era deles naqueles momentos.
Dizem que Deus leva os que ama. De certeza. Como não havia Deus de se enamorar de Celestino? Talvez até tenha sido ele a enviar um anjo para mexer nos travões e encaminhar-lhe o carro para a ribeira... Ou feito um pacto com o Diabo: deixa-me o Celestino e a alma da Ivone é tua, para atormentares.
Isso também era quase certo. Que no dia em que o Manel entrara naquela casa, fora na qualidade de intrumento do Demo. Mas quem poderia saber isso ao olhar para aqueles caracóis, para aquelas bochechinhas rosadas? E aqueles olhos tristes que continuavam a perguntar, onde está o papá? Não faria qualquer um o que fosse preciso para os voltar a ver iluminados?

terça-feira, 8 de abril de 2008

27

- O que é que queres daqui?
- Atão, é assim que recebe as visitas?
- Visita? Não deve estar a soprar bom vento... Entra lá... E limpa os pés no tapete, que acabei de passar cera no chão não há dez minutos!
- Ainda cheira. Teve a fazer bolos?
- Tive. E tivesse sabido que vinhas “de visita” tinha arranjado uns foguetes para compôr a festa. A que se deve tamanha honra?
- Você não perdoa...
- Ó filho... eu sou quase santa mas ainda não sou Jesus. Anda lá!
Vira-lhe as costas e volta para a cozinha. O Manel do talho segue-a pelo corredor afora, um pouco surpreso por aquela casa lhe parecer tão apertada de repente.
- Esta casa parece que encolheu.
- Não tenho reparado. Se calhar ando a encolher com ela. Já tu, não páras de crescer... O que é que o médico diz disso?
- Isto já não tem remédio - diz ele sorrindo e acariciando a pança.
Mas ele estava era a lembrar-se de quando andava de triciclo naquele corredor. Do tempo em que os obstáculos eram os pés dos armários e não os fetos colossais que agora lhe atrapalham a passagem como fosse entrar na selva escura.
A idéia que tem daquela casa é do tempo em que viveu nela. O sorriso que ainda lhe fica na cara por algum tempo não tem nada a ver com a conversa nem com o seu orgulho (fingido) na barriga. Tem a ver com memórias de uma infância particularmente feliz. Aquele padrão dos azulejos do corredor conhece ele de cor. Por ali rodou o triciclo, marcharam soldados de chumbo, navegaram barcos de papel.
Sentam-se os dois à mesa da cozinha. Ele na esperança de que a menina Ivone lhe sirva bolo, mas ela senta-se também, frente a ele, braços cruzados ao peito, à espera.
- Lembra-se de quando eu passava aqui as tardes? Já nessa altura estava sempre a fazer bolos...
- Pois sim, deixa-te lá de conversas, que eu tenho mais que fazer. O que é que tu queres?