sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

17

A partir de certa altura ele tinha começado a associar a menina Ivone à bruxa da história da casinha de chocolate. Ele e o Zé eram como Hansel e Gretel, tentados por todo o tipo de guloseimas e forçados a comer até os estômagos doerem. Algum dia ainda iriam parar ao forno da madrinha, que estava sempre aceso.
A mesa transborda de bolos, pãezinhos, queijos, doces.
- Serve-te, filho, que deves trazer fome. Olha, tens aqui popias.
Ele sabe que não adianta resistir. Aquilo é uma ordem.
Mas se há algo de delicioso nisto é ver que nada mudou por aqui. Aqui sim há algo de familiar, de conhecido, de casa. Não fosse a mudança de perspectiva e tudo seria igual. Agora a menina Ivone é mais pequena que ele.
Mas não é só isso. Em quatro anos ele cresceu mais do que em altura e vê mais coisas. Sentado de novo a esta mesa, ele, que se sente já outro, vê agora claramente que aquela proliferação de comida revela apenas um grande vazio. E percebe porque é que a bruxa precisa de atrair as criançinhas, porque é que a menina Ivone come vivo quem lhe entra porta dentro.
Desde que ele chegou, ela ainda não se calou. Conduz as operações domésticas com irrelevantes comentários sobre tudo o que faz. Mas o tagarelar constante não cala o silêncio que ocupa esta casa e que sempre esteve aqui, sim, mas que só agora ele ouve. É um silêncio que passa as paredes, vem de todo o lado e pode instalar-se seja onde for, a qualquer momento, como um bolor.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

16

- Entra, filho, entra.
Já o cobriu de beijos dizendo, estás tão crescido e agora afasta-se para que ele entre. Ele limpa bem os pés no capacho da entrada. Cheira a bolos.
- Vens com fome?
- Nem por isso...
- ... eu já vou pôr a mesa...
Deixa-se engolir por aquela escuridão estreita, finta os fetos e os armários com a mochila. Desaguam na cozinha, como sempre acontece em casa da menina Ivone.
- Trazes tão pouca bagagem. Afinal quanto tempo ficas?
- Não muito, madrinha.
- Ai filho, estou tão feliz que tenhas vindo, tão feliz...
A menina Ivone limpa uma lágrima de comoção. E ele diz, então, que é isso?
- Não ligues, filho, não ligues... anda lá...
E leva-o de novo pelos corredores escuros até uma porta que range quando ela a abre. É um quarto onde não se lembra de alguma vez ter entrado, o quarto de hóspedes. Pequeno, mais alto que largo. Uma cama, uma cadeira, um armário e é tudo. E sobre a cabeçeira da cama o retrato antigo de um homem. Fato e gravata. Bigode.
Enquanto a menina Ivone lhe explica que tem toalhas e mais cobertores no armário ele olha o retrato.
- Quem é?
- O tio Celestino.
- Avô do Zé?
- Avô do Zé.
Ficam um momento a olhar para o senhor que tem a expressão de quem está a ser fotografado pela primeira vez na vida. Um caso sério.
- Era um homem bonito.
- Era sim.. E foi a desgraça dele, filho. Foi a desgraça dele...

domingo, 24 de fevereiro de 2008

15

Não saberia dizer o que mudou, mas deve ter sido algo dentro de si. A vila ainda é a mesma. O autocarro passa as bombas da gasolina, o largo da igreja, a escola primária. Novo é o bairro social, o polidesportivo, a rodoviária. Mas é tudo o mesmo. Ele é que é outro. Ele já não mora ali.
A porta pneumática abre-se para deixar sair os passageiros e deixa entrar um cheiro que o perturba por ser tão familiar. Para lá dos travões e do gasóleo há campos. Sol na cal das casas e mais coisas que nem têm nome para dar a um cheiro, mas que ele reconhece. Não são só recordações que se abatem súbitamente sobre ele. É uma solidão imensa.
Põe a mochila às costas. Dali sabe ir ter a casa da menina Ivone, subindo a rua. Lá para baixo é o campo de futebol, vazio a esta hora. Amarelo, laranja quase, o pó. Nunca foi bem terra batida que terra daquela não se deixa bater.
E agora Jaquim? Sobes a rua, olhas em volta, que fazes aqui?
A mochila pesa mas já não é longe. São duas ruas. Desertas quase, não fosse os cães. Olham para ti apenas, deitados à sombra, língua de fora, com perguiça de ladrar. Ali é a loja do Sr. Alcides. E há um clube de vídeo novo. E um café também. E virando a esquina, aqui está o largo, a escola primária, a casa com os azulejos por cima da porta. Santo António. E sabes que se desceres a outra rua vês outra casa, a que foi tua. A vossa casa.
Que desejo palerma este, de voltar para casa quando casa já não se tem.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

14

Sim.
O céu sobre Vila Velha.
O sol a derramar-se nas searas.
Uma promessa de liberdade nas férias, os banhos de mangueira no quintal. Água a escorrer nos ladrilhos quentes e os dois a rir, aos gritos, aos pulos, aos berros, a correrem no pátio, cuecas molhadas, tudo molhado. O Verão e a mãe a rir-se com eles.
E debruçados da torre da igreja, a olhar os campos que o Sol come. O Sol atirando-se contra as casas. Aquele branco atordoante do Verão.
É a luz. Recorda-lhe estas coisas. O embalo do autocarro, as árvores que passam, campos da beira da estrada. Isso.
Volta, regressa, sim está a caminho. Mas onde está a sua vida, a que levava nesses dias? O coração leve. Alguma alegria. Dias cheios. O que aconteceu a isso tudo?
Olha pela janela do autocarro. Conheçe este sítio. Ali à frente há-de haver um restaurante com um toldo vermelho. Depois uma casa de dois andares, um quintal com um pinheiro. Sim, esta estrada. Já estão quase. Vila Velha é já ali, quase se vê, ao fundo da curva.
E ele, onde está? Não está aqui neste autocarro, quase a chegar. Sente-se ainda lá para trás, na cidade. O peso de chumbo aos ombros. Sim, provavelmente ainda anda nas ruas cinzentas da capital, no prédio antigo cheirando a gatos, no quarto a que por enquanto chama seu. Joaquim. Quim, sobrinho, querido, filho, para onde vais? Demoras?
Volto logo, tia. Vila Velha. Sim, visitar o Zé. Ver os amigos. Eu volto logo. Não demoro. Apanho o autocarro. Atravesso campos, montes, planícies... olha que verdes... ainda é Maio. Regresso, sim. Ficou lá alguma coisa. Deixei lá...
... deixámos o quê, mãe? O que fomos. Quem éramos então... Sim, mãe eu quero saber. Porque é que nunca disseste nada? Eu queria saber, sim. Porque se matou o pai?

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

13

Ainda assim, estes dias são os melhores, quando a casa finalmente se encharca em silêncio. Nestes dias deixa-se por vezes parar, a meio de passar umas calças, dobrar umas peúgas. Dá por si a olhar para a Virgem, que, de cima da televisão, mede a humidade com o seu manto de cor mutante.
Não é que o ventre lhe doa. Hoje em dia já nem sente nada, mas é como se tivesse um vazio, ali em baixo. Mais vazio ainda que no coração. No coração ainda guarda ela alguma coisa. E ao fundo do quintal, há a àrvore que lhe guarda segredos. O seu coração é tal e qual a árvore, cala-se e guarda tudo. Faz por ignorar o que tem enterrado entre as raízes. Não há nada a dizer.
Ela também nunca fora de muitas falas. Até na confissão, sempre poupara palavras. Só o Padre Alberto lhe soltara a iálma, fazendo perguntas como quem cava por àgua em terra seca.
…isso porque lhe vira as lágrimas…
E, tentando secá-las, causara mais…
Com as meias dobradas no colo, fica sentada. Idália de Jesus Calminho, sózinha em casa.
Bendito silêncio.
Para além da Virgem, há também um quadro. Jesus com o coração sangrando, cravejado de espinhos. E mesmo assim, a face impassível, de quem sabe que a dor não importa.
É por saber que Jesus lhe vê também o coração, que Idália se poupa ao trabalho de se queixar. Está casada, tem um filho e uma casa. Comida na mesa. Asseio no lar. Se tiver em conta que há quem não tenha onde dormir, quem não tenha o que comer, então está ela muito bem. Que queixas pode ela fazer à vida?
(…tantas…)
Em cima da mesa há uma revista dessas para mulheres. Há muito tempo que ela lê revistas destas. O suficiente para saber que há fulanas, até princesas que, se numa semana encontram o amor da sua vida, na outra está ele perdido. Já ela, tem constância na vida. Tem pratos para lavar e jantar para fazer.
E é assim.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

12

Ela olha para os pratos. Estão ali desde essa manhã, aguardando em silêncio, implacáveis.
É a vida, diria normalmente num suspiro, mas em dias destes antes pensa, isto não é vida.
Domingo e a casa vazia, sem eles, sem cão. Só uma abençoada solidão. Opressiva, ainda assim. Há roupa para lavar e estender, pó para limpar, casa para varrer. E tudo isso é feito, o dia é posto a render.
Não é que ela se importe com o trabalho, o trabalho descobre-o ela em todo o lado, há sempre ordem para pôr numa casa, no mundo. A mãe soubera ensinar-lhe os deveres da mulher. Nisso fora ela boa. Só tarde demais lhe dissera alguma coisa sobre rapazes. Essa conversa viera atrapalhada e aos solavancos, ela já de véu e grinalda e, inevitavelmente, prenha. Mais que pronta para se levantar da estreita cama de solteira e subir a larga escadaria da igreja.
Mas isso não fora culpa da mãe. A culpa fora do ócio, que é invenção do Diabo. Tivesse ela ocupado as tardes livres do liceu a esfregar chão e não teria caído nas cantigas do Manel, nas palavras meladas que ele lhe sussurrara ao ouvido, na praça do jardim, e que lhe tinham aberto o coração. Tinham sido só meio caminho para lhe abrir as pernas. Depois, quando as fechara, estava o mal feito e não levara muito mais tempo até que se lhe fechasse o coração também.
Casava com um traste, sabia-o. Mas era um traste dono de um establecimento comercial, bem parecido e que a emprenhara. Com a mesma convicção com que pegava num balde e numa esfregona, dissera-lhe, ou te casas comigo ou nunca mais fodes ninguém. Fora a única vez que lhe tinha saído uma palavra destas da boca. E ele lá aparecera na igreja.
Depois viera a menina Ivone meter-se na sua vida, ainda antes da desgraça, como sempre fazia com a de toda a gente, a falar-lhe de amor…
Amor também fora uma palavra que lhe andara arredada dos lábios. Amor era coisa de canções, sabia ela, tal como sabia que um chão só brilha se se lhe puxar brilho. Um casamento era a mesma coisa. Casamento era ordem, amor era desordem. Entre os dois ela sabia o que escolher. O Manel era um bicho selvagem que ela havia de domar, da mesma maneira que se ensina um cão a mijar no quintal e não no tapete da sala.
… é claro que isto fora o que ela pensara durante alguns inocentes meses. Depois a vida logo providenciara razões para que mudasse de idéias. Mas, a vida… é a vida, e aqueles pratos no lava-loiça são a prova de que na vida as coisas só mudam para ficarem na mesma. Lava-os. Se há trabalho para fazer, faz-se. Que mais se há-de fazer?

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

11

É já o Sol que se põe. A luz de ouro que entra pela cozinha. Cortinas de renda.
Agora é hora de ir para casa.
Vai, filho, que a tua mãe já deve estar em cuidados.
Em cuidados está ela sempre.
Despede-se da madrinha, relutante. Ela, enquanto o beija na face, faz deslizar para a sua mão uma nota dobradinha.
Toma lá filho, pelas perdizes.
E ele apressa-se a sair antes que ela o veja corar de vergonha.
Quando estaciona em frente a casa nota que o pai ainda não voltou. A outra carrinha ainda não está no sítio do costume. Tanto melhor. As janelas estão às escuras. A mãe está decerto lá para dentro, para a cozinha. Abre a porta e é saudado pelo som familiar da panela de pressão. O cheiro é o de sempre, a carne e batatas. Está em casa.
Chegas tarde, diz a mãe.
O Pai?
Também ainda não chegou.
Quando é que chega?
Sei lá. Já sabes como ele é.
Posso ir para o quarto?
Vai-te mas é lavar. E leva daqui o cão.
O cão já vai a caminho do quintal, que é onde mora, mas apanha ainda umas festas antes de ir. Zé Manel, esse, vai sem mimos para o quarto. Aqui o silêncio é melhor, aqui sim, está em casa.
Despe-se e vai para o duche. Sabe-lhe bem a àgua a escorrer pelo corpo, a limpar-lhe o dia, mais um, a sair-lhe da pele. Aqui não se ouve a panela de pressão e quase desaparece o cheio a carne e a couve, se usar muito sabão, muito champô. Aqui é um mundo de chuva, de água e corpo. Líquido, como a barragem. Escuro, se fechar os olhos, como a noite.
E reduz a água quente, até sentir o frio igual ao da noite em que se lançou à barragem, a nadar.
O frio da água e o mais quente abraço.
Braços.
Abraço.
Amigo.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

10

A madrinha serve-lhe café com leite e biscoitos. Ele está com fome depois do dia passado no campo, a andar e ela olha satisfeita para a voracidade dele.
Come, filho, come, que ainda há mais.
Ela tem sempre coisas destas em casa. Bolos, biscoitos, pãezinhos. Passa metade do dia a amassar. Hoje já apanhou os biscoitos fora do forno, que chegou tarde. Normalmente fica a vê-la a mexer em farinha e ovos.
Vai fazer popias?
Vou sim, filho, já te tinha dito.
Quando é que ele chega?
Na terça.
Tem a certeza?
Pois se é o que está na carta…
Ele não telefonou?
Não.
E as perdizes?
São para amanhã, que vem cá o Salvador e os miúdos.
Então e quando é que faz as popias?
Amanhã também.
E tem tempo para tudo?
Tenho pois.
Veja lá não se esqueça…
Está descansado.
…que ele vem na terça… é mesmo na terça, não é?
Ó filho, não leste a carta?
Lera, claro que lera. Várias vezes. Mas mesmo assim volta a pegar nela, tira-a de cima do frigorífico, onde está desde que chegou a semana passada. O envelope beje, rasgado à pressa, lá dentro aquela simples e única folha com a caligrafia certinha e limpa do Jaquim.
…e se a madrinha não se importar, gostava de ficar hospedado em sua casa. Eu chego na terça e fico só uns dias. Queria aproveitar esta altura para resolver alguns assuntos. Deixámos muita coisa em Vila Velha quando nos tivémos de ir embora por causa da doença da minha mãe.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

9

Entra, filho, entra.
Ele limpa os pés o melhor que pode ao capacho da entrada. O cão lança-se pelo corredor em direcção ao quintal, que é o seu sítio, que é onde há água e gatos. Mas vai com cuidado, que sabe que se partir alguma coisa apanha com o chinelo da menina Ivone.
Aconteceu isso uma vez quando o rabo se lhe enganchou no naperon de um aparador conseguindo deitar ao chão todas as 37 molduras que se engalfinhavam ali em cima. Mas o susto é que fora a lição, que do chinelo fugira ele.
Zé Manel ajudara a madrinha a montar as fotografias outra vez. Fora a primeira vez que reparara que eram só de crianças.
Quem é este?
Esse és tu, filho.
E este?
Esse és tu também.
E este?
A tua prima.
E este?
O teu pai.
Ele mal conseguia distinguir as diferenças entre aquelas crianças todas, quase todas bébés. Havia pelo menos uns cinco deitados nuzinhos em cima de uma pele de borrego. Todos com o mesmo sorriso na cara. De todas as fotografias só um bébé não sorria. Nem teria precisado de perguntar, era o pai dele.
Ao lado havia ainda outro aparador com as fotos em família. Estas maiores, mas nem por isso em menor número. Primos e tias e parentes e afilhados e conhecidos. Sempre a menina Ivone metida no meio de uma pose de família que se assemelhava um pouco à das fotos que costumavam tirar na equipa de futebol do Sport Clube. Fora nestas que pela primeira vez vira o pai do Jaquim.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

8

A casa da madrinha é a da esquina. A que tem um painel de azulejos por cima da porta. Um Santo António que de pouco valera à menina Ivone, que nunca casara. Tal como de pouco lhe valera a ele, rezar pela Dona Luisa, que mesmo resistindo tantos anos à doença ainda assim se fora, enquanto que o pai continuava com uma saúde de ferro, apesar da pressão alta, da obesidade, do catarro, da calvice e do chulé.
A madrinha mostrara-lhe uma vez um album onde havia muitas fotos do pai, do tempo de solteiro. Mal o reconhecera. O casamento estragara-o tanto como ele estragara o casamento.
Por isso é que ele diz nunca, quando a madrinha lhe pergunta, quando é que te casas.
Ah filho, sabes lá o que dizes, não há pior sina que ficar solteiro, não há pior sina.
Mas vossemecê é feliz.
Sabes lá tu isso, filho, sabes lá tu…
Mas ao menos está descansada…
Mais descansada do que isto só já na cova e com um terço rezado.
Ouve-lhe os passos no corredor quando ela vem para lhe abrir a porta.
Conhece esta casa tão bem como a sua. Esta é também a sua casa. Era para aqui que fugia sempre que o pai se punha naquelas disposições de tirar o sossego aos santos. Ainda é para aqui que vem, quando não tem mais para onde ir.
A casa está cheia de si. Está cheia de toda a gente da família. Há fotografias por todo o lado. Há molduras nas paredes, nas cómodas, nos albuns. E há fotos dos afilhados todos que a menina Ivone foi angariando ao longo da solteirice. Ela, que tem sempre uma trabalheira com prendas no Natal, e um calendário especial para se lembrar de aniversários. Ela, que o trata por filho, como se filho fosse.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

7

Começaram por ser parceiros ao berlinde e depois de ganharem a todos da turma e até aos mais velhos da terceira classe, Zé Manel mudou-se para a mesma carteira que o Jaquim. A primeira da fila, mesmo em frente à professora, mas ele sem medo, que tinha o amigo ali ao lado.
Custou-lhe caro. Teve de convencer a Maria da Conceição a ir lá para trás. Na verdade subornara-a com três cromos que tinha repetidos e a borracha em forma de borboleta que vinha no estojo de lápis que a madrinha lhe oferecera e que ele achava dispensável porque borboletas eram para meninas. Ela queria também o afia vermelho, mas ele explicou-lhe que isso não podia dar porque ele era do Benfica. Se quisesse podia dar-lhe antes o lápis verde. Mas ela também tinha lápis de côr, por isso não valia a pena.
E fora assim.
Os raspanetes da Dona Luísa exigindo silêncio e sossego nas aulas tinham começado logo nesse dia. O Jaquim estava dividido entre o prazer de um novo amigo e o respeito pela solene profissão da mãe. Mas havia tanto que contar um ao outro e os planos para o recreio, para ganhar o abafador do Mamede, para ver quem cuspia mais longe, para sabotar os jogos das miúdas…
A Dona Luísa só sorria quando virava as costas à classe para escrever no quadro. A ordem tinha de ser mantida na aula. Zé Manel nunca a vira a rir na escola. Pelo menos não com aquelas gargalhadas que mais nenhum adulto dava quando ele contava anedotas. Aquele riso que ele nunca mais ia ouvir.
O cancro é uma coisa terrível, dissera a madrinha. Roeu-a por dentro, filho, roeu-a por dentro. Pobre Jaquim.
No ano em que a Dona Luísa adoecera, ele ajoelhara-se à beira da cama e pela primeira vez na vida rezara convicto. Pedira a Deus que trocasse, que levasse antes o pai dele e deixasse a mãe ao Jaquim. O Jaquim precisava dela, ele não precisava do pai. E além disso, assim ficariam os dois sem pai. Seriam mais iguais.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

6

A tabuleta à entrada de Vila Velha, com o seu adequado nome, continua caída entre as silvas da berma da estrada, desde que o Açoreano foi contra ela há uns meses atrás. Ainda se andam a rir disso. Há-de contar a cena ao Jaquim.
Entra por baixo e vira à direita nas bombas da gasolina, subindo até ao largo da Igreja. Frente ao café não está nenhuma mota, que é normalmente sinal de amigos. Segue em frente, passa o talho e a casa. A carrinha do pai não está. Quase lhe apetece ficar em casa, que sossego em casa é coisa rara, mas tem as perdizes lá atrás, prometidas à madrinha.
Pára então o carro no largo da escola primária, tudo em redor sufocado num silêncio de Domingo. Foi ali mesmo, há muito tempo, que se conheceram. Ali nos baloiços do recreio, primeiro dia de aulas, os dois à espera de vez.
Não gosto da escola. Saltara-lhe isto da boca de repente, irritado também com a comichão que lhe davam as calças de lã que a mãe o obrigara a usar nessa manhã.
Não gostas porquê?
Porque não.
Isso não é resposta.
Diz quem?
Diz a minha mãe.
E quem é a tua mãe?
É a professora.
Isto calou o Zé Manel que já estava pronto para empurrar o menino da mamã para cima das miúdas que saltavam ao elástico.
A tua mãe dá réguadas?
A mim não.
Zé Manel mediu o miúdo de cima a baixo. Só parecia menino da mamã por causa do colete e dos sapatos engraxados.
Como é que te chamas?
Joaquim Manuel dos Santos Ferreira, disse o outro, suspenso na dúvida se deveria acrescentar que já sabia escrever o nome todo. Mas Zé Manel não o deixou dizer mais nada.
Tenho berlindes. Queres jogar?

sábado, 9 de fevereiro de 2008

5

O cão não conhece o Jaquim. Se calhar até lhe ladra, quando o vir. Mas se calhar não, que o cão é esperto e sabe distinguir entre a gente boa e a má. Deve cheirar a ruindade.
Mas o Jaquim já o conhece, ou sabe dele pelo menos. Ia numa carta.
Tenho um cão novo. O Cantiflas morreu. É um filho do Cantiflas, mas nem parece. É filho também da Lássi, a cadela da Mónica, lembras-te dela? Da cadela, da Mónica sei eu que te lembras. É castanho e tem mais pêlo do que o Cantiflas mas também é muito rafeiro. É muito esperto e já sabe que tem de fugir ao meu pai e que a minha mãe lhe dá mais comida se se for pôr a olhar para ela. Gosto muito dele e só não o deixo dormir comigo porque agora já não temos a cerca no quintal e ele anda sempre lá para os valados e volta cheio de carraças mas vem logo a correr quando o chamo. Chamo-lhe só cão porque não lhe quis chamar nada. O meu pai está irritado por causa disso. Agora é por isso.
A menina Ivone manda-te beijos e de resto está tudo na mesma. O Sport Clube perdeu outra vez. Não fui ver porque era Domingo de matança e depois ainda tinhamos linguíças para encher.
Escreve-me quando chegares a Paris ou a sítios desses. Estou cheio de inveja e tu és um cabrão.
Eu estou bem. Enterrámos o Cantiflas no quintal. Não conto mais porque ainda me ponho triste de pensar nisso. O meu pai é que é um cabrão, não és tu.
As melhoras à tua mãe e a minha também manda melhoras e a menina Ivone também.
Um abraço do teu amigo,
José Manuel

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

4

Este cão não tem nome. Nunca teve. Ele nunca deixou que tivesse.
Não que o Manel do talho não tivesse tentado o baptismo do bicho. Chamara-lhe tudo. Tarzan, Bonanza, Napoleão, Chalana… Nenhum pegara, que ele não deixava. Havia de se chamar cão. Cão, só cão.
Cão, só cão…isso é lá nome para um animal?!
Depois de semanas de bulha, o escárnio já levava o Sr. Manel a usar nomes como Fidel, Samora, Franco, e mesmo, no dia em que o cão o mordera por lhe ter dado um pontapé, Salazar, Belzebu e Satanás. Só quando a ferida que os caninos lhe tinham deixado na canela infectou é que cedeu. Daí em diante já só dizia: esse cão… ou, nos piores dias: esse estafermo…
Este cão é esperto. Sempre agiu como se soubesse que fora o Manel do talho quem lhe matara o pai. O cabrão. O tiro da espingarda ecoara decerto pela aldeia toda. A ninhada com que o velho, reumático, mas ainda surpreendentemente viril Cantiflas deixara a Lássi prenha devia ter sabido. Os bichos sabem coisas.
A Menina Ivone dissera-lhe, ò filho, pára de te pegar com o teu pai, já sabes bem o animal que ele é. E depois beijara-o na testa como sempre fazia. E abraçara-o, mesmo que ele dissesse sempre, largue-me lá, sua velha. E, não faça isso, quando ela lhe penteava o cabelo com as mãos.
Olha filho, porque é que não vais à Mónica. A Lássi já pariu. Arranja outro cão. Um cão é um cão.
Ao sair da casa da madrinha ainda resmungava, eu não lhe perdoo, desta vez não lhe perdoo. Mas o coração derreteu-se-lhe quando foi ver os bichinhos à da Mónica. Passou horas a brincar com eles, a acalmar-se. Estivesse ali o Jaquim e teria sido mais rápido. Mas não foi preciso, não desta vez. Às tantas até já se ria, com os cachorros a treparem-lhe para cima, deitado no chão, a lamberem-lhe a cara.
Escolheu o mais vivaço e levou-o para casa. E só para irritar o pai não lhe deu nome. Chamou-lhe cão.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

3

A madrinha, que fora quem lhe escolhera o nome, baptizara também o primeiro cão. Chamara-lhe Charlot.
Charlot era um labrador preto que, pela propensão para tropelias e disparates enquanto cachorro, ganhara logo esse nome. Fora do que se lembrara a menina Ivone, que vira desses filmes no cinema.
José Manuel Calminho e Silva fora um nome também escolhido num momento de grande inspiração, quando a menina Ivone — que já então andava bem longe de ser menina — resolveu fazer frente ao Manel do talho e dar-lhe um nome decente ao filho. A insistência do homem para que o miúdo carregasse para sempre a cruz do nome de um dos avôs, Teodemiro ou Possidónio, só foi contrariada porque a menina Ivone, com o seu poder de madrinha, sugerira que se invertesse o nome do pai. Em vez de Manuel José teriam um José Manuel. Acharam todos bem, a tão boa ideia ninguém se conseguia opôr. Houve finalmente sossego na casa. Ou pelo menos tanto sossego quanto o Manel do talho consentia que coubesse num dia.
Assim chegou José Manuel ao mundo, com o nome do pai às avessas, avesso ao pai desde o começo, quando este o tentava aguentar nos braços com a falta de jeito que sempre tivera para as coisas vivas, habituado que estava às carcaças dos porcos e das vacas.
O segundo cão já se chamava Cantiflas, quando chegou para calar o berreiro do Zézinho que, durante dias, derramara lágrimas numa choradeira desenfreada, por ter visto o Charlot a ser esventrado pela furgoneta dos ciganos que ia acelerada na estrada, a caminho da feira de Castro. Um homem não chora, gritara-lhe o pai, mesmo sendo ele ainda um miúdo, a paciência rebentada para lá dos limites pelo incessante berreiro. Mas depois desistira, e trouxera-lhe um cão. Vê lá se te calas.
Um outro nome, alcunha, ganhara-o Zézinho na escola primária, onde lhe chamavam o Fúrias desde que pregara um par de sopapos ao primeiro que se atrevera a gozar com o apelido herdado da mãe. De Calminho não tinha nada.
E Fúrias passara a Zé Fúrias no tempo do Sport Clube, quando furava o campo nuns repentes que levavam quase sempre ao golo.
Mas isso fora antes.
Agora já era, era só, o Zé do talho.
E ainda, sempre, o filho do Manel do talho.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

2

São sempre eles os dois. Ele e o cão. Lá atrás vão as perdizes. A estrada é deles. A carrinha segue embalada, a descer os montes.
Eram sempre eles os dois. Ele e o Jaquim. O mesmo banco na escola. O grandes dribles no recreio e depois os grandes dribles no Sport Clube. Foram os melhores anos, sempre achou. A estrada, que devia ser mais longa para demorar a levá-lo a casa, é um bom sitio para pensar nisto.
Se calhar ele quer vir à caça. Há-de lhe perguntar. Só os dois, outra vez, como dantes. Sim, como dantes, mesmo que já tenha mudado tudo. Que isto a vida é assim, tudo a mudar tão depressa, tudo sempre na mesma. Os dias sempre iguais e tudo já tão diferente… mas não é disso que vão falar. Nem do tempo, que se pôs agora tão bom depois da chuva. Isso é conversa para os outros. Ele vai…
Ele vai sentir-se um bocadinho idiota quando o voltar a ver. Aquela mesma atrapalhação que sentira no dia em que entrara na casa da professora. Tantos livros. Tudo tão novo. E ele a dizer, a olhar para os livros, você tem aqui o mundo todo. E ela a rir-se. O Jaquim a rir-se também. Depois os três. Rir nunca fora tão bom. O mundo ali todo.
…sim, que ele deve trazer assim como que um cheiro a mundo. O mesmo dos postais que cheirava quando já os lera e olhara demais, para tentar extrair ainda mais deles. O cheiro a viagens. A sítios longe.
A estrada está deserta. É só uma longa faixa entre campos lavrados. Agora é só ele. Ele e o cão. O cão que olha para ele agora, mas que prefere pôr a cabeça de fora e cheirar o vento. Para ele isto é uma grande viagem. Vai feliz. Ah, os cães… não fosse por eles e já teria levado o cano da caçadeira à boca.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

1

O cão olhou para ele.
Ele olhou para o cão.
Entendiam-se. Havia que esperar. E havia tempo para isso. O dia todo, horas longas pela frente, o que fosse preciso. Contava era estar ali, longe de tudo.
O cão abanou a cauda um par de vezes e depois voltou a concentrar-se, a focar os sentidos nas perdizes que deviam estar para lá das árvores. Era esperar. O bicho era esperto e nascera com a paciência dos predadores. Passou-lhe a mão pelo pêlo. Isso não o distraía. Sabia que só queria dizer, estamos aqui, os dois, estamos aqui.
Tinham andado toda a manhã. Ele até quase esquecera a arma que trazia ao ombro. Havia as papoilas novas nos campos e aquele silêncio de insectos e pássaros. O Verão murmurando já no ar. A terra húmida, de dias à chuva, e o céu descarnado, em puro azul. Uma grande ausência de gente e de homens. Deixaram-se andar.
Depois sentaram-se os dois, num bom sítio. Sim, elas andavam ali. O cão sabia-o e ele também. Era esperar. A espingarda pronta, apontada ao que saísse. O tempo pairando, suspenso em redor.
Até se ouvir um estremecer. Asas que subitamente se abrem e um voo que começa mas que antes de se fazer bem ao ar é cortado por um tiro. E depois mais asas a fugir em pânico. O cão lança-se directo ao sangue. É um bom cão. Há-de voltar com a perdiz na boca, a felicidade nos olhos, a cauda abanando.
A espingarda também não lhe falhou. É uma boa espingarda. Qualquer dia ainda a há-de usar para matar o pai.