sábado, 15 de novembro de 2008

43

Ele olha para os caixotes.
Estão ali numa aparente resignação, de quem sabe que não tem mais para ganhar na vida senão bolor. Jaquim sente-se derrotado logo à partida, só de olhar para eles.
Então é isto, tudo o que resta. Uma dúzia de caixotes, deixados para trás numa correria.
A mãe pensara que haveria tempo para voltar atrás, para os vir buscar. Cinco anos e nunca houvera tempo.
Jaquim puxa com o pé uma pedra para manter aberta a porta da arrecadação. Monta o banquinho do lado de fora. Em cima põe-lhe a tesoura, a fita-cola e os sacos plásticos. Os gatos, atraídos pelo barulhinho crocante dos sacos vêm cheira-los, não vá dar-se o caso de haver ali comida.
A madrinha deixou-o bem equipado. Ainda ele mal limpara as ramelas dos olhos e já ela o estava a chamar para comer. Tinha já uma sandes pronta num pires (manteiga, fiambre e queijo) e ao lado o leite com o ColaCao (ela ainda o conhece). À ponta da mesa estava aquele equipamento todo (tesoura e sacos e éteceteras), e ela estava vestida, pronta a sair.
- Vá, fica à vontade, filho, que eu tenho uns mandados.
E antes de arrefecer o leite, já ela tinha batido a porta e ido à vida.
Agora aqui está ele, com os caixotes.
O primeiro que puxa, com esforço, pesado como o raio, diz: COZINHA. Corta-lhe a fita-cola, abre-o, e não tarda a fechá-lo. Um dia pode ser que aquelas panelas lhe sirvam para alguma coisa. Quem sabe? Se alugar uma casa, se arranjar um emprego, se acreditar nesses planos todos...
O segundo diz: LIVROS. Este leva mais tempo a voltar a fechar. É que os livros chamam e pedem para ser abertos. Põe alguns de lado, dentro de um dos sacos plásticos (tão previdente, a madrinha) e volta a selar a tampa.
O terceiro diz: COISAS. E ele, sorrindo com a capacidade sintética da mãe, despacha a curiosidade com um rasgão decidido, mas detém-se subitamente quando abre as abas da caixa. O sorriso morre imediatamente. Aqui está o perigo, aquilo que ele se devia ter lembrado: que dentro de caixas de “coisas” há sempre coisas esquecidas capazes de nos fazer lembrar de outras coisas que seria melhor esquecer. Logo ao de cima, ainda dentro da transparente embalagem original, está o cisne. O estúpido cisne de cristal.

domingo, 21 de setembro de 2008

42

No seu sonho, Susana é loura. Pouco provável, que a família, de ambos os lados, tem raízes árabes e judaicas. Mas no sonho Susana é um anjo, e os anjos são louros, pois então.
Susana voa sobre a vila. Através dos seus olhos, Idália ergue-se do quintal e paira por cima do telhado. Fica ali um pouco, com pena de deixar a terra, mas o cheiro a carne guizada que vem da chaminé força-a a seguir em frente e em breve o seu olhar abrange a vila toda. Vila Velha. De telhas gastas, tão escura como o resto da planície.
O Alentejo é grande, muito grande, percebe agora. É tão extenso que mal se lhe vê o fim. Estica-se em negros campos sussurantes de espigas cansadas de serem espancadas pelo sol, e que à noite se submetem à mínima aragem.
Mas, prestando atenção, lá para o fundo, avista-se Espanha. É só um brilhozinho, como uma aldeola, mas ela sabe que é mais que isso. É um país inteiro, cheio de gente alegre e com Princesas e Reis. Mesmo daqui de longe, ouvem-se as palmas, gente a gritar olé e os tacões da princesa Letícia, que dança uma sevilhana. São muito mais alegres, os espanhóis. É para ali que Susana tem de ir. É isso que Idália diz a Susana, mesmo sem palavras. Porque Idália está dentro de Susana e basta pensar uma coisa para Susana perceber. E nem tem de dizer que está na hora de se separarem: Nem é preciso, entendem-se bem. Não é preciso um adeus.
Vai lá, filha, suspira Idália.
Há um momento em que tem medo, quando vê Susana pelo lado de fora e se apercebe que ela é só uma cabecinha com asas, esvoaçando irrequieta como um pardal. Frágil demais para voar o caminho todo até Espanha. Mas Susana sorri confiante e além disso há aquele cabelo louro, tão bonito que só pode ser uma benção de Deus. É isso que lhe arranca do peito o suspiro e o “Vai lá, filha.”
Infelizmente, nesta parte do sonho, Idália acorda. Irrita-se um bocadinho com o Senhor Manel que ressona lá do outro lado da cama, mas depois vê pelas frinchas das persianas que já é dia e lembra-se que tem umas cuecas no balde da lixívia que é preciso enxaguar. Levanta-se, lava-se, veste-se e sente que está quase alegre quando vai ao quintal buscar o balde.
Lá ao fundo, ao pé da cerca está a árvore, uma azinheira. Normalmente, quanto olha para ela, sente sempre uma inquietação. Houve uma altura em que pensava muito se as raízes da árvore podiam entrar na caixa, no caixãozinho. Como se a árvore pudesse comer Susana. Mas hoje sente que ela já não está ali. Susana já foi para Espanha há muito tempo, mesmo se o sonho só aconteceu esta noite.
Idália olha para a árvore como se a visse pela primeira vez. Agora pode olhar para ela, descansada. É uma árvore muito bonita, alta e frondosa. Uma pessoa até se podia sentar lá debaixo, a ouvir a rádio ou a cozer meias. Mas cheira um bocadinho mal. É pena. O cão vai sempre para ali mijar.

domingo, 15 de junho de 2008

41

Lençóis lavados.
Alvos. Quebradiços quase. Passados a ferro e esticados num excesso de zelo a significar carinho ou amor. É quase inumano dormir numa cama destas, o colchão duro como o chão, nunca moldado por um corpo. Tem poucas visitas, a menina Ivone, mesmo que tenha um quarto para elas. Ou poucas visitas que fiquem a passar a noite.
Custam a passar, as noites.
As noites do Jaquim.
As noites da menina Ivone.
No quarto do retrato do avô Celestino, o Jaquim despe-se à pressa. Há um frio acumulado nas paredes. Passou para os lençóis, nota ele assim que sobe para a cama. Arrepende-se de não ter trazido um pijama. Mas depois lembra-se que já não tem pijamas. Cresceu demais para os que tinha e, claro, desde que passou a ser ele a comprar a sua própria roupa, esquece-se de comprar pijamas. Já cuecas e peúgas, sabe deus.
Leva um pé ao nariz para averiguar o estado deste par que tem calçado. Menos mal. Ainda pode dar para amanhã. Não trouxe muitas.
De certeza que a madrilha lhas lavava se lhe pedisse, mas não quer dar trabalho. O Jaquim não é de dar trabalho a ninguém. Em casa da tia aprendeu bem isso. A apagar-se. É o mínimo que se pode fazer quando se mora com alguém por favor.
Enfia-se na cama. Os lençóis estão gelados, o cobertor pesa uma tonelada e de certeza que vai levar umas horas a aquecer. Deixa-se ficar imóvel, evitando tocar nas partes frias da cama.
O sono virá quando vier. Há muitas coisas em que quer pensar e outras em que não quer pensar, antes de dormir, mas há uma sempre presente. A noção de que tem de começar a viver.
Diz-lhe a razão de que isso tem de começar pelo emprego, pelo dinheiro. É que nos últimos anos tem sido esta a sua vida. Uma cama fria que não lhe pertence.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

40

Basta que a noite caia para que Vila Velha se cubra de silêncio. Claro que em frente ao café, até à meia-noite há sempre um par de bêbados. E há a mota ocasional, acelerando a qualquer hora da noite, de escape rasgado. Mas de resto, fecha-se o mundo em casa. Até as portadas, os estores das janelas se fecham, mal deixando transpirar o brilho dos concursos, noticiários e novelas dos televisores. Ficam as ruas abandonadas ao tremor das lâmpadas fracas que a junta de freguesia espalhou, esparsas, pelas esquinas.
Ele tem um sítio. Só seu, que não é do tempo do Jaquim, mas recente. É por baixo do depósito da água. Aquilo antes tinha um muro, mas parte foi abaixo e agora entra-se na boa. É quase um baldio, mas há uns degraus de cimento e ele senta-se ali encostado ao pilar.
Afinal não disseram grande coisa. Mas foi um bom dia. Melhor que o normal, pelo menos. Com o Jaquim ele é mais ele. Mais Zé, menos Zé do talho.
Foi pena afinal o Jaquim não querer ir ter com o pessoal ao café. Cansaço, disse. Fica para amanhã.
Na boa.

Este sítio. Daqui vê-se até muito longe, é o sítio mais alto.
Em noites destas o céu está cheio de estrelas e a terra também.
O que é que o Zé ou o Zé do talho ou o Zézinho importam aqui? Aqui é só ele e o cão.
- Anda cá, bicho. Larga essa merda!
E ele vem. Senta-se aos seus pés a arfar e a olhar em redor. Deixa-se afagar. Coçar na nuca. E claro, os dedos logo param o coçanço quando encontram uma carraça.
Ó, bicho dum raio!
O Zé saca dos cigarros e acende um, puxa umas passas.
E olha as estrelas derramadas por todo o lado. A planície negra com as suas luminosas carraças humanas. Algumas das terreolas ele sabe quais são. Sabe o seu nome. Já as estrelas brilham para ele anónimas. Nunca aprendeu constelações nem sabe onde fica Órion. Talvez por isso prefira as estrelas do céu às da terra.
O cão está quieto. Expectante. Sabe o que se segue. O horror da coisa. Mas sabe que ao cheiro feio e à pontada de dor se segue o alívio.
Vale a pena esperar o alívio.
E afinal até é rápido. O Zé já fez aquilo tanta vez. Abre-lhe o pêlo até encontrar a puta. E depois, zás, dá-lhe com o cigarro e ela cai, fica esperneando no chão. Nunca muito tempo, porque vem logo o sapato do Zé.
O Zé espanta-se sempre com a quantidade de sangue que as putas têm.
Puxa mais uma passa, mas o cigarro acaba por ter o mesmo destino da carraça.
Agora sim, há paz no mundo.
Espera e tudo se acalma. Ele, o cão, a noite.
Enche os pulmões de solidão e estrelas sem nome.
Adia o regresso a casa o mais que pode.
Não é nunca na cama que encontra sossego.

domingo, 8 de junho de 2008

39

- Madrinha?
- Sim?
- Porque é minha madrinha?

Depois de o Zé se ir, quando já voltaram à cozinha e já é altura para um copo de leite quente. Antes de dormir. Agora, pensa ela. Afinal mais cedo que tarde.
Procura o passador para lhe coar a pele do leite e vai respondendo, como se nada fosse.
- Foi a tua mãe que me convidou, filho.
- Mas porquê a si?
- Não sei. Se calhar porque ela não conhecia muita gente cá na altura.
- Ela não estava naquelas fotografias.
O Jaquim não diz a que fotografias se refere mas ela percebe que são as do baptizado do Zé. Pois claro.
- Não. A tua mãe teve de ficar em casa nesse dia, se bem me lembro. Estava grávida de ti e tu não te estavas a portar bem. Sim, até lhe fui levar uma fatia de bolo lá a casa...
A caneca de leite muda de mãos, pronta a beber, assim que arrefeça.
- A minha tia nunca lhe perdoou. Agora... quer dizer, desde que... desde que a minha mãe morreu, só fala da doença como se fosse um castigo. Que se não tivesse vindo para cá isso não lhe tinha acontecido.
A testa da menina Ivone enruga-se. As coisas que se dizem às crianças! Ele há com cada uma...
- Bem, isso, a tua tia... Eu não sou de dizer mal das pessoas mas, sinceramente... Nem ao funeral do teu pai veio.
- Porquê?
A menina Ivone suspira. De repente dá-lhe um grande cansaço. Afinal de que serve estar a remexer naquelas coisas? Estende o braço até ao outro lado da mesa e põe a sua mão sobre a do Jaquim, que agarra a caneca do leite.
- Ouve, filho. O teu pai era um bom homem. E a tua mãe amava-o. Foi por isso que veio para cá. O resto... o resto, foi tudo o desgosto. Vai lá alguém perceber as razões dele...

- Ele deixou alguma coisa? Uma carta, um bilhete?
- Não, filho, não. Deixou só um grande desgosto. Daqueles de que nem vale a pena falar...

sexta-feira, 6 de junho de 2008

38

Sorrisos de fotografia. Para mais tarde recordar a vida como se gostaria que tivesse sido. Não é talvez falta de sinceridade mas mais uma representação de um desejo. Vontade de dizer, neste dia fomos felizes. Gostaríamos de ter sido felizes. E por isso sorri-se para a máquina.
Sentaram-se na sala, depois do jantar e, a pedido do Jaquim, a menina Ivone abriu os armários e de entre a sua colecção de albuns tirou um onde havia mais fotografias do baptizado dele. Eram só quatro, afinal, e nenhuma com o pai dele, ao contrário do que esperava. Só ele, aquele bebé vestido de branco, seguro em braços desconhecidos. Quem era aquela gente que sorria sem verdadeira vontade? Amigas da mãe que não duraram muito, ou gente da vila que depois, mais tarde na vida, tivera mais que fazer.
A menina Ivone, sentada, mãos sobre as coxas como quem espera um sobressalto, olha os rapazes que desfolham outras imagens do passado. Imagina o que se pode seguir, mas espera, com mórbida curiosidade, a ver que voltas dará a vida.
O album é grande. Tem muita gente, muitos anos, casamentos e baptizados. Eles riem-se ocasionalmente das modas. Chapéus com véu dos anos 60, calças à boca de sino dos anos 70, folhos dourados dos anos 80. Alguma surpresa quando vêm versões novas da gente velha de Vila Velha.
Depois, claro, chegam as fotos do baptizado do Zé. Estão no mesmo album, como ela bem sabe. Umas seis páginas. E ela aguarda. Essas páginas são desfolhadas mais lentamente. Ela nota como o olhar do Jaquim procura.
Procura.
Procura.
E encontra, pois então. Está ali. Ainda nessa tarde ela se lembrou, pouco depois do Manel sair e, para confirmar, foi abrir o album. Lá estava. Fechou-o, fechou os olhos e suspirou. E quando o Jaquim, nessa mesma noite, lhe pediu para ver o album, ela decidiu, pois que se desenrole o destino.
Mas afinal, embora se detenha nas fotos, o Jaquim não diz nada, não faz perguntas.
Talvez seja por causa do Zé. O Zé era um bébé lindo. Mesmo agora, de unhas encardidas de sangue, dedos feridos de facas, mas delicados e respeitosos no virar das páginas do vetusto album de memórias fotográficas, tem uma inocência nos olhos que ninguém se atreveria a quebrar.
Sim, inocência. A menina Ivone sabe bem quanto vale.
Nos olhos do Jaquim vê bailar a pergunta, embora fique só ali, sem se abeirar dos lábios. Mas os dedos deslizam-lhe inconscientemente para a foto, roçam ligeiramente o sorriso largo do pai. A felicidade genuina que mostra, segurando nos braços o Zé, seu afilhado.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

37

O medo não justifica tudo. E também não explica a cobardia. Ou a perguiça. Lassidez.
Dentro do seu coração, tão lacerado como o de Jesus, ela tem uma resposta. Só que não vale a pena. Agora já não.
Idália. O seu nome, Idália, na boca dele. Tão sagrado como o de Jesus, lembra-se ela. Idália de Jesus.
- Idália! Não chore, Idália!
- Deixe padre, deixe. Não é nada, não é nada.
Mas as mãos tremiam-lhe. E o lábios. E ele a ver. Ai Jesus, a vergonha, ele a ver… O padre a ver, que já não estavam no confessionário. A confissão arrastara-se até à sacristia, sacrosanta antecâmara dos mistérios da missa. Ali nunca tinha ela entrado.
- Sente-se então Idália. Va lá. Vai ver que vai ser um dia bonito. Pense nisso. É uma alegria, afinal de contas.
Talvez. Mas ela, fazendo esse esforço, só consegue pensar na trabalheira. Os bolos, os convidados, a vela…
- Então, que dia quer para o baptizado?
Ele pegou já no livro grande e na caneta. Quando finalmente ela consegue limpar as lágrimas e parar o tremor dos lábios, responde.
- No mês que vem, o primeiro Domingo. Pode ser?
- Pois claro que pode, diz ele. E sorri.
Como um anjo.
Ai Jesus, como um anjo. Ainda assim, ainda tem aquilo na cabeça.
- Mas o Limbo, padre, como é?
Ele suspira.
- Olhe Idália, isso nem nós sabemos bem. Até há quem na Igreja diga que não existe. Mas, a existir, não está no Céu nem no Inferno. É apenas um sítio onde talvez exista alguma felicidade natural, que é coisa que pertence às crianças. Mas por outro lado é longe de Deus e isso é suficiente para que não seja o Paraíso… Há também quem diga que Deus acolhe essas crianças directamente no seu seio. E outros que dizem que as suas almas simplesmente não chegam a existir por não serem baptizadas, não terem nome.
- Eu dei-lhe um nome…
Ele espera. Finalmente ela diz:
- Eu chamava-lhe Susana.
Ele pega-lhe na mão.
- Era um bom nome. - diz. - Apropriado. Susana significa “pura como um lírio”, sabia?
Ela abana a cabeça.
- Não, não sabia.
- Idália, vê? Você é muito mais bonita quando sorri.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

36

O cão está a olhar para os dois, à espera que algo aconteça, língua pendurada. Mas não acontece nada e ele resolve cheirar ali em volta. Pode ser que encontre um pau. Um pau era bom. Se lho atirassem ele podia ir a correr buscá-lo.
- Tomamos banho? - pergunta o Zé.
Jaquim abana a cabeça, franze os sobrolhos. Vira-se para trás e começa a andar de volta para a vila.
- Anda. Já está quase na hora de jantar. A madrinha vai estar à espera.
Voltar à estrada de alcatrão ainda são uns minutos largos e os dois rapazes concentram-se no suor, no pó, nas ervas secas, no cascalho que lhes foge debaixo dos pés.
A meio caminho o Zé assobia ao cão para lhe lembrar que tem de vir com eles. E o cão vem, a correr disparado. Ultrapassa-os e desaparece de vista.
- Já vai para a estrada, cabrão do cão!
O Jaquim percebe a preocupação do Zé. Ouviu muitas vezes a história do Charlot e a furgoneta dos ciganos. Inclusivé nas diferentes versões da menina Ivone e do senhor Manel. É por isso que diz:
- Não tenhas medo.
E até chegarem a casa da madrinha não dizem mais nada e o Zé sabe que ainda tem um amigo e que não precisa ter medo.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

35

Porque é tudo silêncio.
Como o silêncio sério que se houve debaixo de água depois da ruidosa alegria do mergulho, quando a pressão nos ouvidos nos lembra que não somos dali e nos ameaça de morte.
O silêncio da borracha dos ténis nos corredores do hospital.
O silêncio dos travões do metro em hora de ponta.
O silêncio da campaínha a anunciar o fim de uma aula.
O grande, enorme e ensurdecedor silêncio da cantina do liceu.
Porque a única coisa que se ouve são lágrimas nocturnas que se imaginam a correr no quarto ao lado, soando muito mais alto que os carros e as motas acelerando avenida acima com ódio aos semáforos.

terça-feira, 27 de maio de 2008

34

- Lembras-te?
O Jaquim assente. Tanto se lembra que tem um assomo de felicidade ao ver que está tudo na mesma. A tábua dos mergulhos pregada à raiz da árvore. A ribeira correndo parada e a festa de insectos. O silêncio de insectos. O sol a ferir as sombras aqui e ali, verdejando a água.
O Zé sorri quando o Jaquim sorri.
(…nem tudo está perdido, nem tudo está perdido...)
- Ainda vens para aqui?
Às vezes. Mas é mais os miúdos. A água dá-me pela cintura. A gente agora vai mais é às piscinas da câmara. Mas é no Verão. E paga-se…
- Como é que a gente dava mergulhos dali?
- Dantes havia mais água.
- Ah, pois é… E à barragem, ainda vão?
- Ainda há quem vá. Mas como é o Açoreano que guia, a gente vai mais é às piscinas porque há gajas…
Riem-se.
- …e cerveja.
E aqui o Zé lembra-se de contar a história do acidente com a placa de sinalização. Como Vila Velha foi parar ao chão.
E voltam a rir-se. É bom rir. Faz de conta que o agora ainda é o dantes. Mas o Zé tem de tocar na distância e pergunta:
- Então e o pessoal lá de Lisboa, é porreiro?
O Jaquim encolhe os ombros.
É só isso que tem para dizer.

sábado, 24 de maio de 2008

33

Ai as mulheres.
No entanto o Manel do talho sai daquela casa com um peso na algibeira da camisa e uma secreta leveza na alma. A cólera é coisa que lhe vem e vai como um piscar de olhos. Tudo se há-de acabar. Não há-de ser preciso fazer nada. Se para que tudo se resolva é preciso fazer nada, então faça-se nada. Para ele está bem assim.
Aguenta-se ainda ali um momento, debaixo do Santo António de azulejos, porta trancada atrás de si, e chega a mão ao peito, tira a foto, só para a certeza.
Há-de queimá-la, promete.
Mas isso outro dia. Agora tem de a ver, de olhar muito para ela. Olhar muito para ele.
As mulheres, que sabem elas disto?
Todas aquelas mamas, todas aquelas coxas são só ardis. Boas carnes, mas caras. Esse preço conheçe-o ele, que o anda a pagar há tantos anos. A prisão do lar, mesmo com o benefício das cuecas, calças e camisas lavadas.
Que percebem as mulheres de tomates que é preciso aliviar? Da camaradagem? Da tropa? Dos bons tempos?
Com o Armando nunca houvera uma etiqueta de preço. Acontecera. E continuara a acontecer até a vida voltar ao civil. E cada um fora à sua vida.
E depois, um dia, no matadouro, lá estava ele. Viera. E nunca se tinha falado nisso. Não houvera promessas nem planos. E nem depois disso. Resolviam-se no mato, algures entre o matadouro e a vila, uns olivais, uns barrancos. Às vezes até a chover ou com um frio que desafiava a tusa. Mas resolviam-se. E estava tudo bem assim. Não era preciso fazer nada.
Manel olha para a foto. O sorriso do Armando.
Que sabia ele, um homem do talho? Como havia de adivinhar?
Como havia de saber que durante esses anos de mato, todas as vezes que esvaziava os colhões, enchia o cu do Armando com poesia? E adivinhava lá ele que a poesia consegue matar de tristeza?
Saíra caro ao Armando, não ter um preço.
Agora há dias em que o Manel do talho quase se arrepende. De quê nem sabe bem. Mas arranja umas flores, vai ao cemitério e concede-se o paneleiro luxo de sentir saudades.
Os bons tempos.

domingo, 20 de abril de 2008

32

- Achaste-a?
Ele assente.
- Deixa ver.
A menina Ivone estende a mão e espera. E ele acaba por ceder. Tudo se conspurca, tarde ou cedo nesta vida, afinal de contas. Mas ela, embora olhe um demorado minuto para a fotografia, não diz nada quando lha devolve. Vira-lhe as costas e vai para o lava-louças.
- Isto tem um preço... - diz ela depois.
- É só uma fotografia. Acha que isto vale alguma coisa?
- Tu lá sabes o que vale. Nem sei como é que a Luísa não a queimou.
- A Luísa era uma boa mulher...
- Boa demais. Mas se julgas que te perdoou, andaste bem enganado. Soube foi conter o rancor. Dever ter sido isso que se transformou naquele cancro... Não faz bem a ninguém conter tanta coisa azeda no peito.
- Então o que é que quer? Diga lá...
- O Zé. Quando é que lhe começas a pagar o que lhe é devido?
- Outra vez essa história?! Mas quando é que vocês deixam de me azucrinar com isso? Acha que ando aí a nadar em dinheiro? E falta-lhe alguma coisa, falta?!
A voz do senhor Manel já se está a erguer, pronta para a luta. Mas a menina Ivone ergue solenemente a palma de uma mão e ele cala-se.
- Vais fazer só uma coisa. Quando ele te disser que se vai embora, tu pagas-lhe o que lhe deves e deixa-lo ir.
- Ir-se embora?! Que raio de conversa é essa? O que é você lhe anda a meter na cabeça?
A menina Ivone suspira.
- Sempre foste um grande tosco. Eu lá preciso de andar a armar intrigas? O que é que achas que vai acontecer no fim desta semana, quando o Jaquim voltar para Lisboa?
O senhor Manel olha para ela sem conseguir responder.
- Porque é que o Armando se mudou para cá? Para ser veterinário num matadouro neste fim de mundo? Não achas que, pela mesma ordem de idéias, o teu filho prefere ser talhante em Lisboa?
Ele fica petrificado. Primeiro muito pálido, depois corado até à raiz dos cabelos.
- Você cale-se, sua puta. Você cale-se...
Ela fixa-o nos olhos. Sem rasto de medo.
- É esse o preço: deixa-o ir. Quando ele quiser ir, deixa-o.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

31

Uma fotografia, para mais tarde recordar. Vinte e cinco anos mais tarde, para ser mais exacto. Ou mais ou menos, já não sabe bem.
Ele, vejam lá, ainda com cabelo, ainda sem barriga. Bons tempos.
...bons tempos...
E o Armando, sorrindo.
Não havia de sorrir, o cabrão?
Tinha sido um bom dia, depois de uma boa noite, e a vida no exército era fácil. Já tinham acabado as guerras e as revoluções. E ali estavam eles, dois alegres magalas, frente ao quartel, vivendo os bons tempos.
É disso que ele se quer lembrar, dos bons tempos. Está tudo ali naquela fotografia, no cigarro que uma das mãos dele segura, na mão do Armando sobre o seu ombro.
O mal dos bons tempos é uma pessoa não saber com certeza se os tempos são os bons quando os vive. Com os maus é mais fácil, nota-se logo. Mas é preciso viver uma merda de cinquenta anos para depois conseguir olhar para trás e perceber que afinal só dois ou três é que valeram a pena e o resto andou tudo pelo assim-assim.
Não é que ele seja um desses mariconços nostálgicos. Cagando e andando, é mais o seu lema. Mas a alguma memória tem uma pessoa de se agarrar. Nem que seja uma fotografia roubada. Que nem é roubo, convence-se, enquanto fecha a caixa o melhor que a fita-cola ainda deixa. Aquilo é mais seu que do Jaquim. O Armando foi sempre mais seu do que de qualquer outra pessoa. E essa é uma dádiva que ele, desde que olhou para trás e viu quais tinham sido os bons tempos, aprendeu a apreciar. Mesmo que agora já seja um bocadinho tarde. Vinte e cinco anos, mais ou menos.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

30

Ela fica sentada, a menina Ivone, ouvindo o barulho que ele faz arredando caixas na arrecadação do quintal. Sentada à mesa, rodeada de bolos e a pensar em coisas que não se dizem.
É tarde para se livrar da vida pelas próprias mãos, como fez o Armando. Homem esperto. Mas se aguentou até agora, pouco mais há-de faltar.
Um dos gatos entra na cozinha, não sem primeiro se roçar na ombreira da porta, na perna de uma cadeira. Só depois acede a ser coçado debaixo do queixo. Vem refugiar-se da inusitada usurpação do seu território. Não que a cozinha lhe desagrade. Mas a esta hora o quintal é por direito seu. Está indignado. Mia. A menina Ivone entende que ele tem fome e, sem vontade de se levantar, pega numa das popias sobre a mesa, parte um pedacinho e estende-lho.
O gato só precisa de cheirar uma vez para perceber que aquilo é comida que não lhe interessa. Levanta o rabo ainda mais ofendido e, sem cerimónias, regressa ao quintal.
O instinto dos animais é uma coisa estranha e ela nunca o compreendeu. Mas fora o fascínio. Um pitada de vaidade. E talvez inocência. Sim, talvez. Se deixara que o miúdo lhe chupasse os mamilos fora porque gostara de se imaginar mamã. Como se a sesta fosse uma brincadeira de faz-de-conta. E havia qualquer coisa de certo naquilo. Ela enrolava-se à volta dele e havia paz. As brincadeiras dele eram tão selvagens… Como são sempre as brincadeiras dos miúdos, mas chegava à hora da sesta e ele ainda tinha o coração a bater, das correrias e não acalmava. Por isso ela se deitara, abraçara-o e cantara uma cantiga.
Oliveirinha da serra.
E depois tinham cantado outra, juntos.
Toda a vida fui pastor.
Era um abraço quente, muito bom.
Toda a vida guardei gado.
Ao dezasseis anos ela já tinha os seios fartos. Aos cinco anos, com certeza deve ter sido o instinto que o guiou. Uma memória.
Tenho uma nódoa no peito, ai, ai…

sexta-feira, 11 de abril de 2008

29

Ao fundo do quintal. Foi ali, na arrecadação que as arrumaram, as caixas. Uma coisa temporária, até se poder fazer uma mudança como é devido. Mas tinham ficado. Foram ficando. Quatro anos.
Eram principalmente livros, que no urbano apartamento da irmã da professora não havia lugar para eles. Já para a doença, o miúdo e outros fardos sabe Deus, quanto mais para livros. E por isso tinham levado só as malas, roupas e pouco mais.
Quase todos os caixotes dizem “livros”. Mas há um que diz “cozinha”, outro “brinquedos”. Assim se resumem vidas deixadas para trás.
Há ainda outro, o que ele procurava, mais antigo, parece, pelo grau de amarelecimento e macia humidade do cartão. Vinte anos, quase, calcula ele. Saberia que era este, sem precisar de ler as tímidas letras escritas num canto: “Armando”.
O senhor Manel pára um momento para recuperar o fôlego. São pesados, os cabrões dos livros, as putas das caixas. Senta-se numa e fica a olhar para esta.
Passa os dedos pela fita-cola. Era da boa. Está ali para durar. Pelo menos até ele a arrancar e deixar um rasto de violação. Mas que se lixe. Encontra-lhe o fim e começa a puxar.
Abrir a caixa leva o tempo de três batidas de coração. Aceleradas.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

28

É só um momento. Um minúsculo mini-nano-segundo, mas ainda lá está. Ainda a sente. A dor. Faca tão antiga que devia ter ferrugem, mas não. É imediata, aguda e nunca fica romba. Nunca perde a pontaria, acerta em cheio no coração.
Mas passa.
Passa num instante.
É ferida curada, mesmo que doa. E nunca, nunca mais, ela vai permitir que se volte a abrir.
Ela lembra-se. Claro que se lembra. Como se fosse possível esquecer... Oh, tamanha tolice de juventude!
Um bébé tão lindo, dizia toda a gente. E assim era, mesmo que aos cinco anos já ninguém seja bébé. Era o sorriso e os olhos deslumbrados do Manel, Manelinho, que conquistavam toda a gente.
O tio Celestino montava-o nos ombros e lá iam os dois, rua abaixo. A criança mais linda, rindo aos ombros do homem mais lindo. Não haviam todos de os mirar... Acenos de moças e matronas babadas. Inveja dos homens. O mundo era deles naqueles momentos.
Dizem que Deus leva os que ama. De certeza. Como não havia Deus de se enamorar de Celestino? Talvez até tenha sido ele a enviar um anjo para mexer nos travões e encaminhar-lhe o carro para a ribeira... Ou feito um pacto com o Diabo: deixa-me o Celestino e a alma da Ivone é tua, para atormentares.
Isso também era quase certo. Que no dia em que o Manel entrara naquela casa, fora na qualidade de intrumento do Demo. Mas quem poderia saber isso ao olhar para aqueles caracóis, para aquelas bochechinhas rosadas? E aqueles olhos tristes que continuavam a perguntar, onde está o papá? Não faria qualquer um o que fosse preciso para os voltar a ver iluminados?

terça-feira, 8 de abril de 2008

27

- O que é que queres daqui?
- Atão, é assim que recebe as visitas?
- Visita? Não deve estar a soprar bom vento... Entra lá... E limpa os pés no tapete, que acabei de passar cera no chão não há dez minutos!
- Ainda cheira. Teve a fazer bolos?
- Tive. E tivesse sabido que vinhas “de visita” tinha arranjado uns foguetes para compôr a festa. A que se deve tamanha honra?
- Você não perdoa...
- Ó filho... eu sou quase santa mas ainda não sou Jesus. Anda lá!
Vira-lhe as costas e volta para a cozinha. O Manel do talho segue-a pelo corredor afora, um pouco surpreso por aquela casa lhe parecer tão apertada de repente.
- Esta casa parece que encolheu.
- Não tenho reparado. Se calhar ando a encolher com ela. Já tu, não páras de crescer... O que é que o médico diz disso?
- Isto já não tem remédio - diz ele sorrindo e acariciando a pança.
Mas ele estava era a lembrar-se de quando andava de triciclo naquele corredor. Do tempo em que os obstáculos eram os pés dos armários e não os fetos colossais que agora lhe atrapalham a passagem como fosse entrar na selva escura.
A idéia que tem daquela casa é do tempo em que viveu nela. O sorriso que ainda lhe fica na cara por algum tempo não tem nada a ver com a conversa nem com o seu orgulho (fingido) na barriga. Tem a ver com memórias de uma infância particularmente feliz. Aquele padrão dos azulejos do corredor conhece ele de cor. Por ali rodou o triciclo, marcharam soldados de chumbo, navegaram barcos de papel.
Sentam-se os dois à mesa da cozinha. Ele na esperança de que a menina Ivone lhe sirva bolo, mas ela senta-se também, frente a ele, braços cruzados ao peito, à espera.
- Lembra-se de quando eu passava aqui as tardes? Já nessa altura estava sempre a fazer bolos...
- Pois sim, deixa-te lá de conversas, que eu tenho mais que fazer. O que é que tu queres?

sexta-feira, 28 de março de 2008

26

Está calor no cemitério. O mármore das campas, saturado de sol, exala um bafo quente de terra e flores cozidas. Efiadas em jarrinhas ou frascos de Tofina, margaridas, gladíolos e jarros desmaiam e apodrecem. Fotos de bem amados, familiares queridos, temidos ou odiados, vão perdendo cores.
É a primeira vez que entra neste cemitério embora o conheça bem de fora. O quadrado murado a branco e os negros ciprestes cheios de mistério. É ali que está o pai. Sabe-o mesmo sem que a mãe lho tenha dito. Por ela o evitar é que ele sabia.
Os outros, a caminho da ribeira em tardes de Verão, desafiavam-se sempre a entrar, a pular o muro ou a passar uma noite lá dentro. Ele mantinha-se em silêncio, com um sorriso postiço como camuflagem para responder às conversas tontas e bazofeiras.
Às vezes perguntavam-lhe se acreditava em fantasmas. Contavam-lhe histórias de assombrações, mortos irrequietos que davam voltas na cova. Defuntos vingativos que voltavam para arrastar os seus assassinos para o inferno. Mas ele mantinha um ar impassivo. Era bom nisso.
Ainda é. A manter a calma, a cabeça fria. A fazer nada. A esperar. Sempre a esperar.
Durante os primeiros cinco anos da sua vida esperara que o pai voltasse. De uma longa viagem. De um país distante. E depois, aos seis, quando percebera finalmente o que era a morte, esperara que, por generosa intervenção de um santo ou de um anjo, os céus deixassem a sua alma aparecer ao filho uma noite, nem que fosse por um momento. Só para dizer adeus. Ou, talvez primeiro, um olá. Um mísero olá.
De onde absorvera aquela mitologia católica nem sabia. Estava no ar. Encardia toda a gente em Vila Velha e tingira-o também a ele, apesar de a mãe não ir nem o levar à igreja. Aos Domingos os outros invejavam-no por poder ficar a ver os desenhos animados na televisão. Ele invejava os outros.
Mas depois, aquela fé por contágio acabara por se esterilizar até só lhe restar um resignado ateísmo. Durante o cancro, nem se lembrara de rezar pela mãe, como fizera em criança, pelo pai. Provavelmente porque se cansara de esperar. Se Deus não respondia a rezas era porque não ouvia. E um Deus mouco não merece respeito. Velinhas a santos também lhe parecia um procedimento demasiado burocrático. Para que havia de ir à secretaria se podia falar directamente com o chefe da repartição? A hierarquia celestial deixava-o confuso.
Ainda assim, há qualquer coisa que o comove numa das campas. A imagem de um anjo da guarda. Fixa-a. O gentil anjo guiando a criança, pegando-lhe na mão.
O Zé pega-lhe na mão e diz:
- É aquele.
Jaquim vira-se e olha para onde ele aponta. Uma campa de mármore branco. Então é ali que está.
Mas ali muito pouco há. O nome. Uma data. Apenas isso.
E no entanto, há mais que isso.
Há uma jarra branca, cimentada, imune ao vento. E dentro dela há flores frescas, que só podem ter sido colhidas hoje, ou já teriam desistido de se manter erectas.

quarta-feira, 26 de março de 2008

25

- Onde é que vamos?
O Jaquim acena só com a mão lá para a frente da estrada.
- Já está calor. Se calhar até dá para ir nadar à ribeira. - diz o Zé.
- Sim, se calhar dá.
Não era na ribeira que o Jaquim estava a pensar, mas o sítio onde quer ir é a meio caminho. O sítio frente ao qual qualquer conversa de Verão arrefecia. Para chegar à ribeira era sempre preciso passar pelo cemitério. Os seus muros brancos e os negros criprestes até já se vêem daqui.
- E tu, quando me vais visitar a Lisboa?
- Hei-de ir, hei-de ir...
Que mais pode ele responder? Nem ao Jaquim consegue dizer nada. Aquilo é como uma falta de ar no peito.
Quando começou a ajudar o pai no talho era ainda menor e disseram-lhe que o governo não deixava que lhe pagassem por causa disso. E depois foram-se acumulando as desculpas. Este mês não há dinheiro. Foi preciso comprar a carrinha nova. Então, paguei-te a carta, do que é que te queixas? Dinheiro para quê, para gastares em cerveja?
Desculpas, ordens, discussões, mas dinheiro que é bom, nada.
Zé Manel nem tem conta no banco. Pois sim, tem trabalho e quem lho dê, tem comida e quem lha faça, tem roupa e quem lha lave e, por enquanto, vai tendo um tecto. Enquanto não fugir. Enquanto não sufocar de vez, enterrado vivo como vive, naquela casa, naquele talho, nesta Vila Velha que envelhece a gente antes do tempo.

quinta-feira, 20 de março de 2008

24

O cão vem disparado lá de cima.
Chega aos dois abanando o rabo e freneticamente indeciso entre lamber o Zé ou cheirar o Jaquim.
- Fugiste outra vez, sacana? Fugiste outra vez? Fugiste outra vez, meu maroto? Seu maroooto!
O cão gosta daquilo. De ficar tonto com as mãos que lhe rodam à volta da cabeça e que ele finge que quer morder. Mas cansa-se depressa, ou finge que se cansa, e fica a arfar um minuto antes de ir cheirar entre as pernas do Jaquim, que era o que queria fazer há já um bocado. Só depois é que se entrega às festas deste. Deixa-se ficar entre as pernas dele, contente com os afagos vigorosos que lhe são feitos e olha para o Zé para perceber se deve fingir sentir-se culpado por ter fugido outra vez do quintal. Mas parece que não é preciso. O Zé não tem ar de quem está a pensar nisso.
Está calor demais para festas e apesar de gostar do novo amigo, o cão resolve deitar-se no chão. Está-se bem ali, à sombra. Boceja. Um bocejo enorme que lhe enrola a língua.
É ali que fica sossegado até a inquietude desinquietar os rapazes e depois vai com eles, cheirando tudo o que houver para cheirar na beira da estrada, no caminho que os vai levando para fora da vila. O cão não se preocupa em saber para onde vão porque já está onde quer estar. Ao pé do Zé.

domingo, 16 de março de 2008

23

- Avisaste a tua mãe que vais jantar à da madrinha?... atã vê lá depois não te demores nem te metas em bebedeiras que amanhã trabalha-se! Isto não são férias só porque o Jaquim cá está.
Mas são. É como as férias, este passarinho no coração, só porque o Jaquim cá está. Finalmente, cá está o Jaquim.
- Atão, vamos aonde?
- Não sei, queres ir prá onde?
- Bora lá pra baixo.
E lá vão eles, rua abaixo, em direcção ao campo de futebol, que era o que o Zé queria dizer. E depois não dizem mais nada porque não sabem o que dizer.
Vai o Zé sorrindo e depois sorri também Jaquim por ter apanhado o sorriso do Zé pelo canto do olho.
O campo de futebol está deserto. Ainda é cedo para os putos que vêm para aqui jogar depois da escola e o sol é o dono do campo mesmo que ainda nem tenha começado o Verão no calendário. O pó sofre mais debaixo deste calor que debaixo dos pés dos moços. O Jaquim experimenta sentar-se na cerca do campo, mas o ferro ferve e vão antes para o banquinho dos velhotes, debaixo do plátano.
- Atão?
- Cá estamos!
- Tás fixe, em Lisboa?
Jaquim encolhe os ombros.
- Tás de férias?
- Não, tou desempregado.
- Vais voltar para cá?
- Não. Já tenho um trabalho que deve começar para a semana. E tu, tás porreiro?
O Zé não responde. Apanha umas pedrinhas do chão e começa a atirá-las ao ferro da cerca. Acerta quase sempre e, no silêncio da tarde, o som metálico ecoa com a violência de tiros.

quarta-feira, 12 de março de 2008

22

- Estás um homem!
É o que lhe diz o senhor Manel quando o vê.
As vezes que o Jaquim já ouviu isso não têem conta. Ainda assim, é sempre uma surpresa ouvi-lo, que ele nunca se sentiu adulto. Nem um espelho sequer lho mostrou ainda.
- Posso sair, pai?
O Zé sempre foi como os cães. Nada lhe contém a alegria e mesmo o senhor Manel tem de sorrir ao olhar para ele, para o brilho que tem nos olhos. Tivesse cauda e estaria a abaná-la.
- Vai-te lá lavar primeiro. Julgas que vais a algum lado nessa figura?
Que o Zé até se esquecia do avental sangrento atado à volta dele. Enquanto vai lá para dentro lavar-se e mudar-se, o senhor Manel volta a medir a figura de homem de Jaquim. E já não sorri quando lhe diz, então os meus pêsames, rapaz.
Se há alguém que sabe acabar com alegrias é o senhor Manel.
Ele responde com o obrigado que automatizou no último mês.
- Era uma santa, a tua mãe.
Sabe lá você isso, pensa ele. Mas a incontável quantidade de disparates que já teve de ouvir desde o funeral deixa-o impassível.
- A gente ainda pensou em ir, mas sabes como isto é. Não dá para deixar o negócio fechado. E conduzir em Lisboa é o diabo...
- Deixe lá isso...
É o que lhe sai da boca. Antes não tivesse ido ninguém, desejara ele. Para não ter de falar, dizer estas coisas que não são nada. Que havia mais para dizer? Sim, a mãe era uma santa por ter suportado quatro anos de dores. Sim, está agora decerto no céu, e sim, vai-se sentir a sua falta. Mas calem-se, por favor. Sabem lá vocês o que é a dor, se o céu existe e o tamanho da falta que ela me faz...

segunda-feira, 10 de março de 2008

21

Atira a carne. Segue-se a faca. E contra a madeira, em gestos precisos e seguros, corta dois bifes. Há sempre algum sangue que escorre, desperdiçado como vinho. O que resta da carne volta para o expositor. Cai entre as costeletas e os coelhos esfolados.
- Aqui tem. Faça bom proveito.
- Até amanhã, se Deus quiser.
A vontade de Deus repete até à eternidade estes dias, estes momentos. É na faca que ele encontra conforto. Com ela na mão não treme. O dia, passado entre carcaças no frigorífico e velhinhas ao balcão, centra-se na faca. Na força de partir ossos, no trepidar da trituradora e naquelas acções de desmembrar, desossar, rasgar, cortar, abrir.
A faca e a espingarda. É nelas que se apoia.
Teve primeiro uma pressão de ar, presente de Natal que pedira, implorara, para finalmente poder receber alguma coisa de jeito em vez das peúgas e pijamas do costume. Tinham ido logo os dois, ele e o Jaquim, lá para trás, para os valados, dar tiros em latas alinhadas em cima do muro, como os caubóis. A Dona Luísa não quisera dar uma ao Jaquim, mas atiravam à vez, não fazia mal. E ele era bom naquilo, ganhava sempre ao Jaquim. Que com a arma apoiada ao ombro descia-lhe uma calma rara. Focava-se tudo. Tudo se preparava para a explosão, o tiro certeiro. Um crescendo a terminar em êxtase. O Jaquim a gritar com ele. Ganda pontaria, pá! Ganda pontaria!
Até o pai, um dia, dissera:
- És bom nisso.
Ele não dissera nada, olhara para o chão, que é como responde quase sempre ao pai.
- Qualquer dia levo-te à caça, para aprenderes a dar uns tiros a valer, como um homem.
E depois viera aquela mão para o despentear e ele quase se desviara. Ele odiava aquela mão que ou lhe aterrava na cara para dizer, és um inútil, ou lhe pousava na cabeça dizendo, ainda és um miúdo.

terça-feira, 4 de março de 2008

20

A mãe tinha também algumas fotos do pai. Não muitas. Eram poucas as que se viam pela casa. E ele sempre soubera que o pai estava morto sem que fosse preciso falar disso. Nem se lembrava bem quando fora que ouvira uma conversa em que se dissera que o pai morrera de vontade própria. Não eram conversas para crianças, mesmo sendo conversas que as crianças ouvem.
Por muito tempo ficara fascinado pela morte. Pelo modo como a vida se esvai, ou simplesmente se abate. Mas as coisas deixam de ser fascinantes quando se tornam banais e, a caminho do talho, não é já nisso que pensa. Nestes dias ele evita pensar na morte o mais que pode, mesmo se a menina Ivone lhe lembra a mãe quando pergunta:
- Vais voltar tarde?
- Não, esteja descansada.
De qualquer maneira, ela dá-lhe uma chave e explica-lhe como tem de puxar a porta, que está um pouco perra. Já na rua, andando sem o peso da mochila, quase cego pela luz que a menina Ivone afasta de casa com pesados reposteiros, sente no peito uma excitação. A mesma que sempre teve, a caminho da casa do Zé.
Vai ver o amigo.
Que as tardes com o Zé eram cheias de aventuras, nem que fossem coisas pequenas, como ir fumar um cigarro roubado para trás do muro da escola, ou ir ao bar do Sport Clube e pedir pela primeira vez uma cerveja.
- Atão?! Agora sentam-se às mesas para pedir gelados? - perguntara o Ti Marquinhos irritado, lá de trás do balcão.
- Para mim era uma im-pe-ri-al, se faz favor! - dissera o Zé, enfatizando a palavra com um ar vagamente snob e aborrecido. Um ar que ele vira nalgum anuncio de vinho do Porto ou de Martini e que era tão artificial que quase conseguira extorquir um sorriso das trombas fixas do Ti Marquinhos.
- E o outro cavalheiro, o que vai tomar?
E ele ficara pendurado na resposta, com mais vontade de comer um gelado que provar aquele mijo com espuma que depois lhe fora posto à frente. Dera um golo e não conseguira beber mais do que isso. O Zé bebera metade, forçando-se a gostar daquilo.
O Zé sempre tivera pressa em ser adulto, mas para o Jaquim, a julgar pelos cigarros e pela cerveja, parecia-lhe que ser adulto era uma coisa que deixava sempre um travo amargo que se entranhava na boca e custava a sair. Mesmo que depois se comessem muitos gelados.

19

Ainda havia lá por casa do senhor Manel uns cartazes de cinema. Fred Astaire. Beatriz Costa. E um com uma fotografia do Tarzan, que fora o que os levara uma vez a passar a tarde aos berros, em cuecas, pendurados nas árvores do quintal. Isso depois de uma enorme discussão para decidir quem seria o chimpanzé.
Mas do avô do Zé nunca se falara. Presença tão ausente das conversas como o pai do Jaquim.
Enquanto a madrinha lava a loiça na cozinha Jaquim deambula pela casa e, na sala, pega numa das fotografias do aparador e olha para o pai. O pai olha para ele, para a máquina, para o fotógrafo. Mas isso é nada. Ele não sabe, não saberia dizer, quem o pai foi, como era.
A mãe e a menina Ivone olham também para ele, mas para Jaquim da foto, ali tão pequeno, acabadinho de baptizar. As duas muito bem arranjadas, frente à igreja. As duas a olhar por ele. Agora mal nenhum o pode tocar, depois da benção do nome.
O pai está mais afastado, e não olha para a criança. Não. Nem olha para elas. Olha em frente.
O pai que idade tinha ali?
Trinta?
Nem sabe.
Também é difícil de lhe ler no rosto o que estaria a pensar. Parece mais surpreso que alegre ou triste. Não é por esta foto que vai saber que era este homem.
O melhor doutor que cá houve, dissera-lhe uma vez o pai do Ildefonso, punha-me as mulas a funcionar como cavalos.
Mas nessa conversa ele não se atrevera a fazer perguntas, que o cigano metia respeito. Medo. Mas sorrira para ele. Passara-lhe mesmo a mão na cabeça. E dissera ainda, sais ao teu pai, que era uma coisa que nunca ninguém lhe dissera.
Depois disso chamara sempre parvo ao Zé, quando ele se punha a resmungar contra os ciganos. Ladrões, assassinos e etc... Ele sabia que o Zé não era assim. Aquilo eram coisas do pai dele. O Sr. Manuel é que destilava ódio pelos poros. Só porque sim. Aquilo ainda era por causa do Charlot, esventrado na estrada.
O Zé era o seu melhor amigo. O Zé era bom, mesmo odiando o pai e odiando-se por agir como ele, às vezes. O Zé não sai ao pai, mesmo que pareça, às vezes.
Jaquim desvia os olhos da fotografia do baptizado para um espelho do outro lado da sala. Ali também não há respostas claras, mas ele confia na palavra do cigano, que era um homem sério.

sábado, 1 de março de 2008

18

Era a maneira como ele andava. E o sorriso. E se punha um chapéu parecia logo um actor de cinema. As môças ficavam sempre a olhar para ele. E ele lá ia, pela rua fora, a fingir que não as via, o que ainda era pior. Suspiravam ainda mais. E ele ria-se disso. Ele sabia. Sim, filho, que ele era um belo malandro, ele sabia que era bonito, o tio Celestino.
Uma desgraça... As pessoas haviam de não poderem ser tão bonitas... Era como no cinema... O meu pai contou-me uma vez, que, uma vez, duas delas até se pegaram à bulha, a rolar pelo chão, como as ciganas, a puxar cabelos e tudo, só porque ele lhes tinha sorrido e cada uma teimava que tinha sido para ela. Benza-te Deus! São umas parvas as mulheres, às vezes...
Mas eu lembro-me dele, e era mesmo assim. Gostava de armar em galã. E ia sempre a Beja ver os filmes. Aos Domingos à tarde, montavam-se os môços todos numa carroça e lá iam eles ao cinema, e ver as môças e aos bailes... Naquela altura, daqui a Beja ainda era mais de um par de horas, e tudo às curvas! Eram uns estróinas... Aquilo é que ele gostava, de ir prós namoricos e ver filmes!
...mas lá assentou, que a minha tia pôs-lhe o cabresto. E casaram logo, não fosse o Diabo tecê-las. E ela também tratou logo de engravidar... que aquilo é que ele gostava do seu menino... só mimo. Foi o que o estragou, ao Manel. Só mimo. Tudo para o menino, era tudo para o seu menino... e depois tá claro, que quando ele morreu, a Albertina não tinha mão pró môço. Pior que o pai!... ah sim, Deus! Tão mais pior que o pai...
...mas lá tento para o negócio tem ele, nisso sempre é melhor que o pai, que aquele cinema que lhe deu na veneta de montar nunca deu dinheiro que se visse, e não fosse o meu pai ter dado emprego ao Manel lá no talho, a Albertina nunca teria conseguido endireitar a casa, doente como andava. Isso é certo e sabido.
Mas o meu pai também, dava tudo pelo irmão... e aquilo foi um grande desgosto quando se soube... Não foram só as galdérias que havia aí por esses montes a chorar... Que ele era um grande estróina, lá isso era, mas também era um bom homem... Eu ainda vi o carro, todo espatifado, lá no fundo da ribeira, que ainda levaram umas semanas até vir um reboque de Beja para o tirar de lá...
Ai filho... desgraças, esta vida, é só o que é...

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

17

A partir de certa altura ele tinha começado a associar a menina Ivone à bruxa da história da casinha de chocolate. Ele e o Zé eram como Hansel e Gretel, tentados por todo o tipo de guloseimas e forçados a comer até os estômagos doerem. Algum dia ainda iriam parar ao forno da madrinha, que estava sempre aceso.
A mesa transborda de bolos, pãezinhos, queijos, doces.
- Serve-te, filho, que deves trazer fome. Olha, tens aqui popias.
Ele sabe que não adianta resistir. Aquilo é uma ordem.
Mas se há algo de delicioso nisto é ver que nada mudou por aqui. Aqui sim há algo de familiar, de conhecido, de casa. Não fosse a mudança de perspectiva e tudo seria igual. Agora a menina Ivone é mais pequena que ele.
Mas não é só isso. Em quatro anos ele cresceu mais do que em altura e vê mais coisas. Sentado de novo a esta mesa, ele, que se sente já outro, vê agora claramente que aquela proliferação de comida revela apenas um grande vazio. E percebe porque é que a bruxa precisa de atrair as criançinhas, porque é que a menina Ivone come vivo quem lhe entra porta dentro.
Desde que ele chegou, ela ainda não se calou. Conduz as operações domésticas com irrelevantes comentários sobre tudo o que faz. Mas o tagarelar constante não cala o silêncio que ocupa esta casa e que sempre esteve aqui, sim, mas que só agora ele ouve. É um silêncio que passa as paredes, vem de todo o lado e pode instalar-se seja onde for, a qualquer momento, como um bolor.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

16

- Entra, filho, entra.
Já o cobriu de beijos dizendo, estás tão crescido e agora afasta-se para que ele entre. Ele limpa bem os pés no capacho da entrada. Cheira a bolos.
- Vens com fome?
- Nem por isso...
- ... eu já vou pôr a mesa...
Deixa-se engolir por aquela escuridão estreita, finta os fetos e os armários com a mochila. Desaguam na cozinha, como sempre acontece em casa da menina Ivone.
- Trazes tão pouca bagagem. Afinal quanto tempo ficas?
- Não muito, madrinha.
- Ai filho, estou tão feliz que tenhas vindo, tão feliz...
A menina Ivone limpa uma lágrima de comoção. E ele diz, então, que é isso?
- Não ligues, filho, não ligues... anda lá...
E leva-o de novo pelos corredores escuros até uma porta que range quando ela a abre. É um quarto onde não se lembra de alguma vez ter entrado, o quarto de hóspedes. Pequeno, mais alto que largo. Uma cama, uma cadeira, um armário e é tudo. E sobre a cabeçeira da cama o retrato antigo de um homem. Fato e gravata. Bigode.
Enquanto a menina Ivone lhe explica que tem toalhas e mais cobertores no armário ele olha o retrato.
- Quem é?
- O tio Celestino.
- Avô do Zé?
- Avô do Zé.
Ficam um momento a olhar para o senhor que tem a expressão de quem está a ser fotografado pela primeira vez na vida. Um caso sério.
- Era um homem bonito.
- Era sim.. E foi a desgraça dele, filho. Foi a desgraça dele...

domingo, 24 de fevereiro de 2008

15

Não saberia dizer o que mudou, mas deve ter sido algo dentro de si. A vila ainda é a mesma. O autocarro passa as bombas da gasolina, o largo da igreja, a escola primária. Novo é o bairro social, o polidesportivo, a rodoviária. Mas é tudo o mesmo. Ele é que é outro. Ele já não mora ali.
A porta pneumática abre-se para deixar sair os passageiros e deixa entrar um cheiro que o perturba por ser tão familiar. Para lá dos travões e do gasóleo há campos. Sol na cal das casas e mais coisas que nem têm nome para dar a um cheiro, mas que ele reconhece. Não são só recordações que se abatem súbitamente sobre ele. É uma solidão imensa.
Põe a mochila às costas. Dali sabe ir ter a casa da menina Ivone, subindo a rua. Lá para baixo é o campo de futebol, vazio a esta hora. Amarelo, laranja quase, o pó. Nunca foi bem terra batida que terra daquela não se deixa bater.
E agora Jaquim? Sobes a rua, olhas em volta, que fazes aqui?
A mochila pesa mas já não é longe. São duas ruas. Desertas quase, não fosse os cães. Olham para ti apenas, deitados à sombra, língua de fora, com perguiça de ladrar. Ali é a loja do Sr. Alcides. E há um clube de vídeo novo. E um café também. E virando a esquina, aqui está o largo, a escola primária, a casa com os azulejos por cima da porta. Santo António. E sabes que se desceres a outra rua vês outra casa, a que foi tua. A vossa casa.
Que desejo palerma este, de voltar para casa quando casa já não se tem.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

14

Sim.
O céu sobre Vila Velha.
O sol a derramar-se nas searas.
Uma promessa de liberdade nas férias, os banhos de mangueira no quintal. Água a escorrer nos ladrilhos quentes e os dois a rir, aos gritos, aos pulos, aos berros, a correrem no pátio, cuecas molhadas, tudo molhado. O Verão e a mãe a rir-se com eles.
E debruçados da torre da igreja, a olhar os campos que o Sol come. O Sol atirando-se contra as casas. Aquele branco atordoante do Verão.
É a luz. Recorda-lhe estas coisas. O embalo do autocarro, as árvores que passam, campos da beira da estrada. Isso.
Volta, regressa, sim está a caminho. Mas onde está a sua vida, a que levava nesses dias? O coração leve. Alguma alegria. Dias cheios. O que aconteceu a isso tudo?
Olha pela janela do autocarro. Conheçe este sítio. Ali à frente há-de haver um restaurante com um toldo vermelho. Depois uma casa de dois andares, um quintal com um pinheiro. Sim, esta estrada. Já estão quase. Vila Velha é já ali, quase se vê, ao fundo da curva.
E ele, onde está? Não está aqui neste autocarro, quase a chegar. Sente-se ainda lá para trás, na cidade. O peso de chumbo aos ombros. Sim, provavelmente ainda anda nas ruas cinzentas da capital, no prédio antigo cheirando a gatos, no quarto a que por enquanto chama seu. Joaquim. Quim, sobrinho, querido, filho, para onde vais? Demoras?
Volto logo, tia. Vila Velha. Sim, visitar o Zé. Ver os amigos. Eu volto logo. Não demoro. Apanho o autocarro. Atravesso campos, montes, planícies... olha que verdes... ainda é Maio. Regresso, sim. Ficou lá alguma coisa. Deixei lá...
... deixámos o quê, mãe? O que fomos. Quem éramos então... Sim, mãe eu quero saber. Porque é que nunca disseste nada? Eu queria saber, sim. Porque se matou o pai?

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

13

Ainda assim, estes dias são os melhores, quando a casa finalmente se encharca em silêncio. Nestes dias deixa-se por vezes parar, a meio de passar umas calças, dobrar umas peúgas. Dá por si a olhar para a Virgem, que, de cima da televisão, mede a humidade com o seu manto de cor mutante.
Não é que o ventre lhe doa. Hoje em dia já nem sente nada, mas é como se tivesse um vazio, ali em baixo. Mais vazio ainda que no coração. No coração ainda guarda ela alguma coisa. E ao fundo do quintal, há a àrvore que lhe guarda segredos. O seu coração é tal e qual a árvore, cala-se e guarda tudo. Faz por ignorar o que tem enterrado entre as raízes. Não há nada a dizer.
Ela também nunca fora de muitas falas. Até na confissão, sempre poupara palavras. Só o Padre Alberto lhe soltara a iálma, fazendo perguntas como quem cava por àgua em terra seca.
…isso porque lhe vira as lágrimas…
E, tentando secá-las, causara mais…
Com as meias dobradas no colo, fica sentada. Idália de Jesus Calminho, sózinha em casa.
Bendito silêncio.
Para além da Virgem, há também um quadro. Jesus com o coração sangrando, cravejado de espinhos. E mesmo assim, a face impassível, de quem sabe que a dor não importa.
É por saber que Jesus lhe vê também o coração, que Idália se poupa ao trabalho de se queixar. Está casada, tem um filho e uma casa. Comida na mesa. Asseio no lar. Se tiver em conta que há quem não tenha onde dormir, quem não tenha o que comer, então está ela muito bem. Que queixas pode ela fazer à vida?
(…tantas…)
Em cima da mesa há uma revista dessas para mulheres. Há muito tempo que ela lê revistas destas. O suficiente para saber que há fulanas, até princesas que, se numa semana encontram o amor da sua vida, na outra está ele perdido. Já ela, tem constância na vida. Tem pratos para lavar e jantar para fazer.
E é assim.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

12

Ela olha para os pratos. Estão ali desde essa manhã, aguardando em silêncio, implacáveis.
É a vida, diria normalmente num suspiro, mas em dias destes antes pensa, isto não é vida.
Domingo e a casa vazia, sem eles, sem cão. Só uma abençoada solidão. Opressiva, ainda assim. Há roupa para lavar e estender, pó para limpar, casa para varrer. E tudo isso é feito, o dia é posto a render.
Não é que ela se importe com o trabalho, o trabalho descobre-o ela em todo o lado, há sempre ordem para pôr numa casa, no mundo. A mãe soubera ensinar-lhe os deveres da mulher. Nisso fora ela boa. Só tarde demais lhe dissera alguma coisa sobre rapazes. Essa conversa viera atrapalhada e aos solavancos, ela já de véu e grinalda e, inevitavelmente, prenha. Mais que pronta para se levantar da estreita cama de solteira e subir a larga escadaria da igreja.
Mas isso não fora culpa da mãe. A culpa fora do ócio, que é invenção do Diabo. Tivesse ela ocupado as tardes livres do liceu a esfregar chão e não teria caído nas cantigas do Manel, nas palavras meladas que ele lhe sussurrara ao ouvido, na praça do jardim, e que lhe tinham aberto o coração. Tinham sido só meio caminho para lhe abrir as pernas. Depois, quando as fechara, estava o mal feito e não levara muito mais tempo até que se lhe fechasse o coração também.
Casava com um traste, sabia-o. Mas era um traste dono de um establecimento comercial, bem parecido e que a emprenhara. Com a mesma convicção com que pegava num balde e numa esfregona, dissera-lhe, ou te casas comigo ou nunca mais fodes ninguém. Fora a única vez que lhe tinha saído uma palavra destas da boca. E ele lá aparecera na igreja.
Depois viera a menina Ivone meter-se na sua vida, ainda antes da desgraça, como sempre fazia com a de toda a gente, a falar-lhe de amor…
Amor também fora uma palavra que lhe andara arredada dos lábios. Amor era coisa de canções, sabia ela, tal como sabia que um chão só brilha se se lhe puxar brilho. Um casamento era a mesma coisa. Casamento era ordem, amor era desordem. Entre os dois ela sabia o que escolher. O Manel era um bicho selvagem que ela havia de domar, da mesma maneira que se ensina um cão a mijar no quintal e não no tapete da sala.
… é claro que isto fora o que ela pensara durante alguns inocentes meses. Depois a vida logo providenciara razões para que mudasse de idéias. Mas, a vida… é a vida, e aqueles pratos no lava-loiça são a prova de que na vida as coisas só mudam para ficarem na mesma. Lava-os. Se há trabalho para fazer, faz-se. Que mais se há-de fazer?

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

11

É já o Sol que se põe. A luz de ouro que entra pela cozinha. Cortinas de renda.
Agora é hora de ir para casa.
Vai, filho, que a tua mãe já deve estar em cuidados.
Em cuidados está ela sempre.
Despede-se da madrinha, relutante. Ela, enquanto o beija na face, faz deslizar para a sua mão uma nota dobradinha.
Toma lá filho, pelas perdizes.
E ele apressa-se a sair antes que ela o veja corar de vergonha.
Quando estaciona em frente a casa nota que o pai ainda não voltou. A outra carrinha ainda não está no sítio do costume. Tanto melhor. As janelas estão às escuras. A mãe está decerto lá para dentro, para a cozinha. Abre a porta e é saudado pelo som familiar da panela de pressão. O cheiro é o de sempre, a carne e batatas. Está em casa.
Chegas tarde, diz a mãe.
O Pai?
Também ainda não chegou.
Quando é que chega?
Sei lá. Já sabes como ele é.
Posso ir para o quarto?
Vai-te mas é lavar. E leva daqui o cão.
O cão já vai a caminho do quintal, que é onde mora, mas apanha ainda umas festas antes de ir. Zé Manel, esse, vai sem mimos para o quarto. Aqui o silêncio é melhor, aqui sim, está em casa.
Despe-se e vai para o duche. Sabe-lhe bem a àgua a escorrer pelo corpo, a limpar-lhe o dia, mais um, a sair-lhe da pele. Aqui não se ouve a panela de pressão e quase desaparece o cheio a carne e a couve, se usar muito sabão, muito champô. Aqui é um mundo de chuva, de água e corpo. Líquido, como a barragem. Escuro, se fechar os olhos, como a noite.
E reduz a água quente, até sentir o frio igual ao da noite em que se lançou à barragem, a nadar.
O frio da água e o mais quente abraço.
Braços.
Abraço.
Amigo.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

10

A madrinha serve-lhe café com leite e biscoitos. Ele está com fome depois do dia passado no campo, a andar e ela olha satisfeita para a voracidade dele.
Come, filho, come, que ainda há mais.
Ela tem sempre coisas destas em casa. Bolos, biscoitos, pãezinhos. Passa metade do dia a amassar. Hoje já apanhou os biscoitos fora do forno, que chegou tarde. Normalmente fica a vê-la a mexer em farinha e ovos.
Vai fazer popias?
Vou sim, filho, já te tinha dito.
Quando é que ele chega?
Na terça.
Tem a certeza?
Pois se é o que está na carta…
Ele não telefonou?
Não.
E as perdizes?
São para amanhã, que vem cá o Salvador e os miúdos.
Então e quando é que faz as popias?
Amanhã também.
E tem tempo para tudo?
Tenho pois.
Veja lá não se esqueça…
Está descansado.
…que ele vem na terça… é mesmo na terça, não é?
Ó filho, não leste a carta?
Lera, claro que lera. Várias vezes. Mas mesmo assim volta a pegar nela, tira-a de cima do frigorífico, onde está desde que chegou a semana passada. O envelope beje, rasgado à pressa, lá dentro aquela simples e única folha com a caligrafia certinha e limpa do Jaquim.
…e se a madrinha não se importar, gostava de ficar hospedado em sua casa. Eu chego na terça e fico só uns dias. Queria aproveitar esta altura para resolver alguns assuntos. Deixámos muita coisa em Vila Velha quando nos tivémos de ir embora por causa da doença da minha mãe.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

9

Entra, filho, entra.
Ele limpa os pés o melhor que pode ao capacho da entrada. O cão lança-se pelo corredor em direcção ao quintal, que é o seu sítio, que é onde há água e gatos. Mas vai com cuidado, que sabe que se partir alguma coisa apanha com o chinelo da menina Ivone.
Aconteceu isso uma vez quando o rabo se lhe enganchou no naperon de um aparador conseguindo deitar ao chão todas as 37 molduras que se engalfinhavam ali em cima. Mas o susto é que fora a lição, que do chinelo fugira ele.
Zé Manel ajudara a madrinha a montar as fotografias outra vez. Fora a primeira vez que reparara que eram só de crianças.
Quem é este?
Esse és tu, filho.
E este?
Esse és tu também.
E este?
A tua prima.
E este?
O teu pai.
Ele mal conseguia distinguir as diferenças entre aquelas crianças todas, quase todas bébés. Havia pelo menos uns cinco deitados nuzinhos em cima de uma pele de borrego. Todos com o mesmo sorriso na cara. De todas as fotografias só um bébé não sorria. Nem teria precisado de perguntar, era o pai dele.
Ao lado havia ainda outro aparador com as fotos em família. Estas maiores, mas nem por isso em menor número. Primos e tias e parentes e afilhados e conhecidos. Sempre a menina Ivone metida no meio de uma pose de família que se assemelhava um pouco à das fotos que costumavam tirar na equipa de futebol do Sport Clube. Fora nestas que pela primeira vez vira o pai do Jaquim.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

8

A casa da madrinha é a da esquina. A que tem um painel de azulejos por cima da porta. Um Santo António que de pouco valera à menina Ivone, que nunca casara. Tal como de pouco lhe valera a ele, rezar pela Dona Luisa, que mesmo resistindo tantos anos à doença ainda assim se fora, enquanto que o pai continuava com uma saúde de ferro, apesar da pressão alta, da obesidade, do catarro, da calvice e do chulé.
A madrinha mostrara-lhe uma vez um album onde havia muitas fotos do pai, do tempo de solteiro. Mal o reconhecera. O casamento estragara-o tanto como ele estragara o casamento.
Por isso é que ele diz nunca, quando a madrinha lhe pergunta, quando é que te casas.
Ah filho, sabes lá o que dizes, não há pior sina que ficar solteiro, não há pior sina.
Mas vossemecê é feliz.
Sabes lá tu isso, filho, sabes lá tu…
Mas ao menos está descansada…
Mais descansada do que isto só já na cova e com um terço rezado.
Ouve-lhe os passos no corredor quando ela vem para lhe abrir a porta.
Conhece esta casa tão bem como a sua. Esta é também a sua casa. Era para aqui que fugia sempre que o pai se punha naquelas disposições de tirar o sossego aos santos. Ainda é para aqui que vem, quando não tem mais para onde ir.
A casa está cheia de si. Está cheia de toda a gente da família. Há fotografias por todo o lado. Há molduras nas paredes, nas cómodas, nos albuns. E há fotos dos afilhados todos que a menina Ivone foi angariando ao longo da solteirice. Ela, que tem sempre uma trabalheira com prendas no Natal, e um calendário especial para se lembrar de aniversários. Ela, que o trata por filho, como se filho fosse.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

7

Começaram por ser parceiros ao berlinde e depois de ganharem a todos da turma e até aos mais velhos da terceira classe, Zé Manel mudou-se para a mesma carteira que o Jaquim. A primeira da fila, mesmo em frente à professora, mas ele sem medo, que tinha o amigo ali ao lado.
Custou-lhe caro. Teve de convencer a Maria da Conceição a ir lá para trás. Na verdade subornara-a com três cromos que tinha repetidos e a borracha em forma de borboleta que vinha no estojo de lápis que a madrinha lhe oferecera e que ele achava dispensável porque borboletas eram para meninas. Ela queria também o afia vermelho, mas ele explicou-lhe que isso não podia dar porque ele era do Benfica. Se quisesse podia dar-lhe antes o lápis verde. Mas ela também tinha lápis de côr, por isso não valia a pena.
E fora assim.
Os raspanetes da Dona Luísa exigindo silêncio e sossego nas aulas tinham começado logo nesse dia. O Jaquim estava dividido entre o prazer de um novo amigo e o respeito pela solene profissão da mãe. Mas havia tanto que contar um ao outro e os planos para o recreio, para ganhar o abafador do Mamede, para ver quem cuspia mais longe, para sabotar os jogos das miúdas…
A Dona Luísa só sorria quando virava as costas à classe para escrever no quadro. A ordem tinha de ser mantida na aula. Zé Manel nunca a vira a rir na escola. Pelo menos não com aquelas gargalhadas que mais nenhum adulto dava quando ele contava anedotas. Aquele riso que ele nunca mais ia ouvir.
O cancro é uma coisa terrível, dissera a madrinha. Roeu-a por dentro, filho, roeu-a por dentro. Pobre Jaquim.
No ano em que a Dona Luísa adoecera, ele ajoelhara-se à beira da cama e pela primeira vez na vida rezara convicto. Pedira a Deus que trocasse, que levasse antes o pai dele e deixasse a mãe ao Jaquim. O Jaquim precisava dela, ele não precisava do pai. E além disso, assim ficariam os dois sem pai. Seriam mais iguais.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

6

A tabuleta à entrada de Vila Velha, com o seu adequado nome, continua caída entre as silvas da berma da estrada, desde que o Açoreano foi contra ela há uns meses atrás. Ainda se andam a rir disso. Há-de contar a cena ao Jaquim.
Entra por baixo e vira à direita nas bombas da gasolina, subindo até ao largo da Igreja. Frente ao café não está nenhuma mota, que é normalmente sinal de amigos. Segue em frente, passa o talho e a casa. A carrinha do pai não está. Quase lhe apetece ficar em casa, que sossego em casa é coisa rara, mas tem as perdizes lá atrás, prometidas à madrinha.
Pára então o carro no largo da escola primária, tudo em redor sufocado num silêncio de Domingo. Foi ali mesmo, há muito tempo, que se conheceram. Ali nos baloiços do recreio, primeiro dia de aulas, os dois à espera de vez.
Não gosto da escola. Saltara-lhe isto da boca de repente, irritado também com a comichão que lhe davam as calças de lã que a mãe o obrigara a usar nessa manhã.
Não gostas porquê?
Porque não.
Isso não é resposta.
Diz quem?
Diz a minha mãe.
E quem é a tua mãe?
É a professora.
Isto calou o Zé Manel que já estava pronto para empurrar o menino da mamã para cima das miúdas que saltavam ao elástico.
A tua mãe dá réguadas?
A mim não.
Zé Manel mediu o miúdo de cima a baixo. Só parecia menino da mamã por causa do colete e dos sapatos engraxados.
Como é que te chamas?
Joaquim Manuel dos Santos Ferreira, disse o outro, suspenso na dúvida se deveria acrescentar que já sabia escrever o nome todo. Mas Zé Manel não o deixou dizer mais nada.
Tenho berlindes. Queres jogar?

sábado, 9 de fevereiro de 2008

5

O cão não conhece o Jaquim. Se calhar até lhe ladra, quando o vir. Mas se calhar não, que o cão é esperto e sabe distinguir entre a gente boa e a má. Deve cheirar a ruindade.
Mas o Jaquim já o conhece, ou sabe dele pelo menos. Ia numa carta.
Tenho um cão novo. O Cantiflas morreu. É um filho do Cantiflas, mas nem parece. É filho também da Lássi, a cadela da Mónica, lembras-te dela? Da cadela, da Mónica sei eu que te lembras. É castanho e tem mais pêlo do que o Cantiflas mas também é muito rafeiro. É muito esperto e já sabe que tem de fugir ao meu pai e que a minha mãe lhe dá mais comida se se for pôr a olhar para ela. Gosto muito dele e só não o deixo dormir comigo porque agora já não temos a cerca no quintal e ele anda sempre lá para os valados e volta cheio de carraças mas vem logo a correr quando o chamo. Chamo-lhe só cão porque não lhe quis chamar nada. O meu pai está irritado por causa disso. Agora é por isso.
A menina Ivone manda-te beijos e de resto está tudo na mesma. O Sport Clube perdeu outra vez. Não fui ver porque era Domingo de matança e depois ainda tinhamos linguíças para encher.
Escreve-me quando chegares a Paris ou a sítios desses. Estou cheio de inveja e tu és um cabrão.
Eu estou bem. Enterrámos o Cantiflas no quintal. Não conto mais porque ainda me ponho triste de pensar nisso. O meu pai é que é um cabrão, não és tu.
As melhoras à tua mãe e a minha também manda melhoras e a menina Ivone também.
Um abraço do teu amigo,
José Manuel

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

4

Este cão não tem nome. Nunca teve. Ele nunca deixou que tivesse.
Não que o Manel do talho não tivesse tentado o baptismo do bicho. Chamara-lhe tudo. Tarzan, Bonanza, Napoleão, Chalana… Nenhum pegara, que ele não deixava. Havia de se chamar cão. Cão, só cão.
Cão, só cão…isso é lá nome para um animal?!
Depois de semanas de bulha, o escárnio já levava o Sr. Manel a usar nomes como Fidel, Samora, Franco, e mesmo, no dia em que o cão o mordera por lhe ter dado um pontapé, Salazar, Belzebu e Satanás. Só quando a ferida que os caninos lhe tinham deixado na canela infectou é que cedeu. Daí em diante já só dizia: esse cão… ou, nos piores dias: esse estafermo…
Este cão é esperto. Sempre agiu como se soubesse que fora o Manel do talho quem lhe matara o pai. O cabrão. O tiro da espingarda ecoara decerto pela aldeia toda. A ninhada com que o velho, reumático, mas ainda surpreendentemente viril Cantiflas deixara a Lássi prenha devia ter sabido. Os bichos sabem coisas.
A Menina Ivone dissera-lhe, ò filho, pára de te pegar com o teu pai, já sabes bem o animal que ele é. E depois beijara-o na testa como sempre fazia. E abraçara-o, mesmo que ele dissesse sempre, largue-me lá, sua velha. E, não faça isso, quando ela lhe penteava o cabelo com as mãos.
Olha filho, porque é que não vais à Mónica. A Lássi já pariu. Arranja outro cão. Um cão é um cão.
Ao sair da casa da madrinha ainda resmungava, eu não lhe perdoo, desta vez não lhe perdoo. Mas o coração derreteu-se-lhe quando foi ver os bichinhos à da Mónica. Passou horas a brincar com eles, a acalmar-se. Estivesse ali o Jaquim e teria sido mais rápido. Mas não foi preciso, não desta vez. Às tantas até já se ria, com os cachorros a treparem-lhe para cima, deitado no chão, a lamberem-lhe a cara.
Escolheu o mais vivaço e levou-o para casa. E só para irritar o pai não lhe deu nome. Chamou-lhe cão.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

3

A madrinha, que fora quem lhe escolhera o nome, baptizara também o primeiro cão. Chamara-lhe Charlot.
Charlot era um labrador preto que, pela propensão para tropelias e disparates enquanto cachorro, ganhara logo esse nome. Fora do que se lembrara a menina Ivone, que vira desses filmes no cinema.
José Manuel Calminho e Silva fora um nome também escolhido num momento de grande inspiração, quando a menina Ivone — que já então andava bem longe de ser menina — resolveu fazer frente ao Manel do talho e dar-lhe um nome decente ao filho. A insistência do homem para que o miúdo carregasse para sempre a cruz do nome de um dos avôs, Teodemiro ou Possidónio, só foi contrariada porque a menina Ivone, com o seu poder de madrinha, sugerira que se invertesse o nome do pai. Em vez de Manuel José teriam um José Manuel. Acharam todos bem, a tão boa ideia ninguém se conseguia opôr. Houve finalmente sossego na casa. Ou pelo menos tanto sossego quanto o Manel do talho consentia que coubesse num dia.
Assim chegou José Manuel ao mundo, com o nome do pai às avessas, avesso ao pai desde o começo, quando este o tentava aguentar nos braços com a falta de jeito que sempre tivera para as coisas vivas, habituado que estava às carcaças dos porcos e das vacas.
O segundo cão já se chamava Cantiflas, quando chegou para calar o berreiro do Zézinho que, durante dias, derramara lágrimas numa choradeira desenfreada, por ter visto o Charlot a ser esventrado pela furgoneta dos ciganos que ia acelerada na estrada, a caminho da feira de Castro. Um homem não chora, gritara-lhe o pai, mesmo sendo ele ainda um miúdo, a paciência rebentada para lá dos limites pelo incessante berreiro. Mas depois desistira, e trouxera-lhe um cão. Vê lá se te calas.
Um outro nome, alcunha, ganhara-o Zézinho na escola primária, onde lhe chamavam o Fúrias desde que pregara um par de sopapos ao primeiro que se atrevera a gozar com o apelido herdado da mãe. De Calminho não tinha nada.
E Fúrias passara a Zé Fúrias no tempo do Sport Clube, quando furava o campo nuns repentes que levavam quase sempre ao golo.
Mas isso fora antes.
Agora já era, era só, o Zé do talho.
E ainda, sempre, o filho do Manel do talho.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

2

São sempre eles os dois. Ele e o cão. Lá atrás vão as perdizes. A estrada é deles. A carrinha segue embalada, a descer os montes.
Eram sempre eles os dois. Ele e o Jaquim. O mesmo banco na escola. O grandes dribles no recreio e depois os grandes dribles no Sport Clube. Foram os melhores anos, sempre achou. A estrada, que devia ser mais longa para demorar a levá-lo a casa, é um bom sitio para pensar nisto.
Se calhar ele quer vir à caça. Há-de lhe perguntar. Só os dois, outra vez, como dantes. Sim, como dantes, mesmo que já tenha mudado tudo. Que isto a vida é assim, tudo a mudar tão depressa, tudo sempre na mesma. Os dias sempre iguais e tudo já tão diferente… mas não é disso que vão falar. Nem do tempo, que se pôs agora tão bom depois da chuva. Isso é conversa para os outros. Ele vai…
Ele vai sentir-se um bocadinho idiota quando o voltar a ver. Aquela mesma atrapalhação que sentira no dia em que entrara na casa da professora. Tantos livros. Tudo tão novo. E ele a dizer, a olhar para os livros, você tem aqui o mundo todo. E ela a rir-se. O Jaquim a rir-se também. Depois os três. Rir nunca fora tão bom. O mundo ali todo.
…sim, que ele deve trazer assim como que um cheiro a mundo. O mesmo dos postais que cheirava quando já os lera e olhara demais, para tentar extrair ainda mais deles. O cheiro a viagens. A sítios longe.
A estrada está deserta. É só uma longa faixa entre campos lavrados. Agora é só ele. Ele e o cão. O cão que olha para ele agora, mas que prefere pôr a cabeça de fora e cheirar o vento. Para ele isto é uma grande viagem. Vai feliz. Ah, os cães… não fosse por eles e já teria levado o cano da caçadeira à boca.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

1

O cão olhou para ele.
Ele olhou para o cão.
Entendiam-se. Havia que esperar. E havia tempo para isso. O dia todo, horas longas pela frente, o que fosse preciso. Contava era estar ali, longe de tudo.
O cão abanou a cauda um par de vezes e depois voltou a concentrar-se, a focar os sentidos nas perdizes que deviam estar para lá das árvores. Era esperar. O bicho era esperto e nascera com a paciência dos predadores. Passou-lhe a mão pelo pêlo. Isso não o distraía. Sabia que só queria dizer, estamos aqui, os dois, estamos aqui.
Tinham andado toda a manhã. Ele até quase esquecera a arma que trazia ao ombro. Havia as papoilas novas nos campos e aquele silêncio de insectos e pássaros. O Verão murmurando já no ar. A terra húmida, de dias à chuva, e o céu descarnado, em puro azul. Uma grande ausência de gente e de homens. Deixaram-se andar.
Depois sentaram-se os dois, num bom sítio. Sim, elas andavam ali. O cão sabia-o e ele também. Era esperar. A espingarda pronta, apontada ao que saísse. O tempo pairando, suspenso em redor.
Até se ouvir um estremecer. Asas que subitamente se abrem e um voo que começa mas que antes de se fazer bem ao ar é cortado por um tiro. E depois mais asas a fugir em pânico. O cão lança-se directo ao sangue. É um bom cão. Há-de voltar com a perdiz na boca, a felicidade nos olhos, a cauda abanando.
A espingarda também não lhe falhou. É uma boa espingarda. Qualquer dia ainda a há-de usar para matar o pai.