terça-feira, 4 de março de 2008

20

A mãe tinha também algumas fotos do pai. Não muitas. Eram poucas as que se viam pela casa. E ele sempre soubera que o pai estava morto sem que fosse preciso falar disso. Nem se lembrava bem quando fora que ouvira uma conversa em que se dissera que o pai morrera de vontade própria. Não eram conversas para crianças, mesmo sendo conversas que as crianças ouvem.
Por muito tempo ficara fascinado pela morte. Pelo modo como a vida se esvai, ou simplesmente se abate. Mas as coisas deixam de ser fascinantes quando se tornam banais e, a caminho do talho, não é já nisso que pensa. Nestes dias ele evita pensar na morte o mais que pode, mesmo se a menina Ivone lhe lembra a mãe quando pergunta:
- Vais voltar tarde?
- Não, esteja descansada.
De qualquer maneira, ela dá-lhe uma chave e explica-lhe como tem de puxar a porta, que está um pouco perra. Já na rua, andando sem o peso da mochila, quase cego pela luz que a menina Ivone afasta de casa com pesados reposteiros, sente no peito uma excitação. A mesma que sempre teve, a caminho da casa do Zé.
Vai ver o amigo.
Que as tardes com o Zé eram cheias de aventuras, nem que fossem coisas pequenas, como ir fumar um cigarro roubado para trás do muro da escola, ou ir ao bar do Sport Clube e pedir pela primeira vez uma cerveja.
- Atão?! Agora sentam-se às mesas para pedir gelados? - perguntara o Ti Marquinhos irritado, lá de trás do balcão.
- Para mim era uma im-pe-ri-al, se faz favor! - dissera o Zé, enfatizando a palavra com um ar vagamente snob e aborrecido. Um ar que ele vira nalgum anuncio de vinho do Porto ou de Martini e que era tão artificial que quase conseguira extorquir um sorriso das trombas fixas do Ti Marquinhos.
- E o outro cavalheiro, o que vai tomar?
E ele ficara pendurado na resposta, com mais vontade de comer um gelado que provar aquele mijo com espuma que depois lhe fora posto à frente. Dera um golo e não conseguira beber mais do que isso. O Zé bebera metade, forçando-se a gostar daquilo.
O Zé sempre tivera pressa em ser adulto, mas para o Jaquim, a julgar pelos cigarros e pela cerveja, parecia-lhe que ser adulto era uma coisa que deixava sempre um travo amargo que se entranhava na boca e custava a sair. Mesmo que depois se comessem muitos gelados.

Sem comentários: