domingo, 15 de junho de 2008

41

Lençóis lavados.
Alvos. Quebradiços quase. Passados a ferro e esticados num excesso de zelo a significar carinho ou amor. É quase inumano dormir numa cama destas, o colchão duro como o chão, nunca moldado por um corpo. Tem poucas visitas, a menina Ivone, mesmo que tenha um quarto para elas. Ou poucas visitas que fiquem a passar a noite.
Custam a passar, as noites.
As noites do Jaquim.
As noites da menina Ivone.
No quarto do retrato do avô Celestino, o Jaquim despe-se à pressa. Há um frio acumulado nas paredes. Passou para os lençóis, nota ele assim que sobe para a cama. Arrepende-se de não ter trazido um pijama. Mas depois lembra-se que já não tem pijamas. Cresceu demais para os que tinha e, claro, desde que passou a ser ele a comprar a sua própria roupa, esquece-se de comprar pijamas. Já cuecas e peúgas, sabe deus.
Leva um pé ao nariz para averiguar o estado deste par que tem calçado. Menos mal. Ainda pode dar para amanhã. Não trouxe muitas.
De certeza que a madrilha lhas lavava se lhe pedisse, mas não quer dar trabalho. O Jaquim não é de dar trabalho a ninguém. Em casa da tia aprendeu bem isso. A apagar-se. É o mínimo que se pode fazer quando se mora com alguém por favor.
Enfia-se na cama. Os lençóis estão gelados, o cobertor pesa uma tonelada e de certeza que vai levar umas horas a aquecer. Deixa-se ficar imóvel, evitando tocar nas partes frias da cama.
O sono virá quando vier. Há muitas coisas em que quer pensar e outras em que não quer pensar, antes de dormir, mas há uma sempre presente. A noção de que tem de começar a viver.
Diz-lhe a razão de que isso tem de começar pelo emprego, pelo dinheiro. É que nos últimos anos tem sido esta a sua vida. Uma cama fria que não lhe pertence.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

40

Basta que a noite caia para que Vila Velha se cubra de silêncio. Claro que em frente ao café, até à meia-noite há sempre um par de bêbados. E há a mota ocasional, acelerando a qualquer hora da noite, de escape rasgado. Mas de resto, fecha-se o mundo em casa. Até as portadas, os estores das janelas se fecham, mal deixando transpirar o brilho dos concursos, noticiários e novelas dos televisores. Ficam as ruas abandonadas ao tremor das lâmpadas fracas que a junta de freguesia espalhou, esparsas, pelas esquinas.
Ele tem um sítio. Só seu, que não é do tempo do Jaquim, mas recente. É por baixo do depósito da água. Aquilo antes tinha um muro, mas parte foi abaixo e agora entra-se na boa. É quase um baldio, mas há uns degraus de cimento e ele senta-se ali encostado ao pilar.
Afinal não disseram grande coisa. Mas foi um bom dia. Melhor que o normal, pelo menos. Com o Jaquim ele é mais ele. Mais Zé, menos Zé do talho.
Foi pena afinal o Jaquim não querer ir ter com o pessoal ao café. Cansaço, disse. Fica para amanhã.
Na boa.

Este sítio. Daqui vê-se até muito longe, é o sítio mais alto.
Em noites destas o céu está cheio de estrelas e a terra também.
O que é que o Zé ou o Zé do talho ou o Zézinho importam aqui? Aqui é só ele e o cão.
- Anda cá, bicho. Larga essa merda!
E ele vem. Senta-se aos seus pés a arfar e a olhar em redor. Deixa-se afagar. Coçar na nuca. E claro, os dedos logo param o coçanço quando encontram uma carraça.
Ó, bicho dum raio!
O Zé saca dos cigarros e acende um, puxa umas passas.
E olha as estrelas derramadas por todo o lado. A planície negra com as suas luminosas carraças humanas. Algumas das terreolas ele sabe quais são. Sabe o seu nome. Já as estrelas brilham para ele anónimas. Nunca aprendeu constelações nem sabe onde fica Órion. Talvez por isso prefira as estrelas do céu às da terra.
O cão está quieto. Expectante. Sabe o que se segue. O horror da coisa. Mas sabe que ao cheiro feio e à pontada de dor se segue o alívio.
Vale a pena esperar o alívio.
E afinal até é rápido. O Zé já fez aquilo tanta vez. Abre-lhe o pêlo até encontrar a puta. E depois, zás, dá-lhe com o cigarro e ela cai, fica esperneando no chão. Nunca muito tempo, porque vem logo o sapato do Zé.
O Zé espanta-se sempre com a quantidade de sangue que as putas têm.
Puxa mais uma passa, mas o cigarro acaba por ter o mesmo destino da carraça.
Agora sim, há paz no mundo.
Espera e tudo se acalma. Ele, o cão, a noite.
Enche os pulmões de solidão e estrelas sem nome.
Adia o regresso a casa o mais que pode.
Não é nunca na cama que encontra sossego.

domingo, 8 de junho de 2008

39

- Madrinha?
- Sim?
- Porque é minha madrinha?

Depois de o Zé se ir, quando já voltaram à cozinha e já é altura para um copo de leite quente. Antes de dormir. Agora, pensa ela. Afinal mais cedo que tarde.
Procura o passador para lhe coar a pele do leite e vai respondendo, como se nada fosse.
- Foi a tua mãe que me convidou, filho.
- Mas porquê a si?
- Não sei. Se calhar porque ela não conhecia muita gente cá na altura.
- Ela não estava naquelas fotografias.
O Jaquim não diz a que fotografias se refere mas ela percebe que são as do baptizado do Zé. Pois claro.
- Não. A tua mãe teve de ficar em casa nesse dia, se bem me lembro. Estava grávida de ti e tu não te estavas a portar bem. Sim, até lhe fui levar uma fatia de bolo lá a casa...
A caneca de leite muda de mãos, pronta a beber, assim que arrefeça.
- A minha tia nunca lhe perdoou. Agora... quer dizer, desde que... desde que a minha mãe morreu, só fala da doença como se fosse um castigo. Que se não tivesse vindo para cá isso não lhe tinha acontecido.
A testa da menina Ivone enruga-se. As coisas que se dizem às crianças! Ele há com cada uma...
- Bem, isso, a tua tia... Eu não sou de dizer mal das pessoas mas, sinceramente... Nem ao funeral do teu pai veio.
- Porquê?
A menina Ivone suspira. De repente dá-lhe um grande cansaço. Afinal de que serve estar a remexer naquelas coisas? Estende o braço até ao outro lado da mesa e põe a sua mão sobre a do Jaquim, que agarra a caneca do leite.
- Ouve, filho. O teu pai era um bom homem. E a tua mãe amava-o. Foi por isso que veio para cá. O resto... o resto, foi tudo o desgosto. Vai lá alguém perceber as razões dele...

- Ele deixou alguma coisa? Uma carta, um bilhete?
- Não, filho, não. Deixou só um grande desgosto. Daqueles de que nem vale a pena falar...

sexta-feira, 6 de junho de 2008

38

Sorrisos de fotografia. Para mais tarde recordar a vida como se gostaria que tivesse sido. Não é talvez falta de sinceridade mas mais uma representação de um desejo. Vontade de dizer, neste dia fomos felizes. Gostaríamos de ter sido felizes. E por isso sorri-se para a máquina.
Sentaram-se na sala, depois do jantar e, a pedido do Jaquim, a menina Ivone abriu os armários e de entre a sua colecção de albuns tirou um onde havia mais fotografias do baptizado dele. Eram só quatro, afinal, e nenhuma com o pai dele, ao contrário do que esperava. Só ele, aquele bebé vestido de branco, seguro em braços desconhecidos. Quem era aquela gente que sorria sem verdadeira vontade? Amigas da mãe que não duraram muito, ou gente da vila que depois, mais tarde na vida, tivera mais que fazer.
A menina Ivone, sentada, mãos sobre as coxas como quem espera um sobressalto, olha os rapazes que desfolham outras imagens do passado. Imagina o que se pode seguir, mas espera, com mórbida curiosidade, a ver que voltas dará a vida.
O album é grande. Tem muita gente, muitos anos, casamentos e baptizados. Eles riem-se ocasionalmente das modas. Chapéus com véu dos anos 60, calças à boca de sino dos anos 70, folhos dourados dos anos 80. Alguma surpresa quando vêm versões novas da gente velha de Vila Velha.
Depois, claro, chegam as fotos do baptizado do Zé. Estão no mesmo album, como ela bem sabe. Umas seis páginas. E ela aguarda. Essas páginas são desfolhadas mais lentamente. Ela nota como o olhar do Jaquim procura.
Procura.
Procura.
E encontra, pois então. Está ali. Ainda nessa tarde ela se lembrou, pouco depois do Manel sair e, para confirmar, foi abrir o album. Lá estava. Fechou-o, fechou os olhos e suspirou. E quando o Jaquim, nessa mesma noite, lhe pediu para ver o album, ela decidiu, pois que se desenrole o destino.
Mas afinal, embora se detenha nas fotos, o Jaquim não diz nada, não faz perguntas.
Talvez seja por causa do Zé. O Zé era um bébé lindo. Mesmo agora, de unhas encardidas de sangue, dedos feridos de facas, mas delicados e respeitosos no virar das páginas do vetusto album de memórias fotográficas, tem uma inocência nos olhos que ninguém se atreveria a quebrar.
Sim, inocência. A menina Ivone sabe bem quanto vale.
Nos olhos do Jaquim vê bailar a pergunta, embora fique só ali, sem se abeirar dos lábios. Mas os dedos deslizam-lhe inconscientemente para a foto, roçam ligeiramente o sorriso largo do pai. A felicidade genuina que mostra, segurando nos braços o Zé, seu afilhado.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

37

O medo não justifica tudo. E também não explica a cobardia. Ou a perguiça. Lassidez.
Dentro do seu coração, tão lacerado como o de Jesus, ela tem uma resposta. Só que não vale a pena. Agora já não.
Idália. O seu nome, Idália, na boca dele. Tão sagrado como o de Jesus, lembra-se ela. Idália de Jesus.
- Idália! Não chore, Idália!
- Deixe padre, deixe. Não é nada, não é nada.
Mas as mãos tremiam-lhe. E o lábios. E ele a ver. Ai Jesus, a vergonha, ele a ver… O padre a ver, que já não estavam no confessionário. A confissão arrastara-se até à sacristia, sacrosanta antecâmara dos mistérios da missa. Ali nunca tinha ela entrado.
- Sente-se então Idália. Va lá. Vai ver que vai ser um dia bonito. Pense nisso. É uma alegria, afinal de contas.
Talvez. Mas ela, fazendo esse esforço, só consegue pensar na trabalheira. Os bolos, os convidados, a vela…
- Então, que dia quer para o baptizado?
Ele pegou já no livro grande e na caneta. Quando finalmente ela consegue limpar as lágrimas e parar o tremor dos lábios, responde.
- No mês que vem, o primeiro Domingo. Pode ser?
- Pois claro que pode, diz ele. E sorri.
Como um anjo.
Ai Jesus, como um anjo. Ainda assim, ainda tem aquilo na cabeça.
- Mas o Limbo, padre, como é?
Ele suspira.
- Olhe Idália, isso nem nós sabemos bem. Até há quem na Igreja diga que não existe. Mas, a existir, não está no Céu nem no Inferno. É apenas um sítio onde talvez exista alguma felicidade natural, que é coisa que pertence às crianças. Mas por outro lado é longe de Deus e isso é suficiente para que não seja o Paraíso… Há também quem diga que Deus acolhe essas crianças directamente no seu seio. E outros que dizem que as suas almas simplesmente não chegam a existir por não serem baptizadas, não terem nome.
- Eu dei-lhe um nome…
Ele espera. Finalmente ela diz:
- Eu chamava-lhe Susana.
Ele pega-lhe na mão.
- Era um bom nome. - diz. - Apropriado. Susana significa “pura como um lírio”, sabia?
Ela abana a cabeça.
- Não, não sabia.
- Idália, vê? Você é muito mais bonita quando sorri.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

36

O cão está a olhar para os dois, à espera que algo aconteça, língua pendurada. Mas não acontece nada e ele resolve cheirar ali em volta. Pode ser que encontre um pau. Um pau era bom. Se lho atirassem ele podia ir a correr buscá-lo.
- Tomamos banho? - pergunta o Zé.
Jaquim abana a cabeça, franze os sobrolhos. Vira-se para trás e começa a andar de volta para a vila.
- Anda. Já está quase na hora de jantar. A madrinha vai estar à espera.
Voltar à estrada de alcatrão ainda são uns minutos largos e os dois rapazes concentram-se no suor, no pó, nas ervas secas, no cascalho que lhes foge debaixo dos pés.
A meio caminho o Zé assobia ao cão para lhe lembrar que tem de vir com eles. E o cão vem, a correr disparado. Ultrapassa-os e desaparece de vista.
- Já vai para a estrada, cabrão do cão!
O Jaquim percebe a preocupação do Zé. Ouviu muitas vezes a história do Charlot e a furgoneta dos ciganos. Inclusivé nas diferentes versões da menina Ivone e do senhor Manel. É por isso que diz:
- Não tenhas medo.
E até chegarem a casa da madrinha não dizem mais nada e o Zé sabe que ainda tem um amigo e que não precisa ter medo.