sexta-feira, 13 de junho de 2008

40

Basta que a noite caia para que Vila Velha se cubra de silêncio. Claro que em frente ao café, até à meia-noite há sempre um par de bêbados. E há a mota ocasional, acelerando a qualquer hora da noite, de escape rasgado. Mas de resto, fecha-se o mundo em casa. Até as portadas, os estores das janelas se fecham, mal deixando transpirar o brilho dos concursos, noticiários e novelas dos televisores. Ficam as ruas abandonadas ao tremor das lâmpadas fracas que a junta de freguesia espalhou, esparsas, pelas esquinas.
Ele tem um sítio. Só seu, que não é do tempo do Jaquim, mas recente. É por baixo do depósito da água. Aquilo antes tinha um muro, mas parte foi abaixo e agora entra-se na boa. É quase um baldio, mas há uns degraus de cimento e ele senta-se ali encostado ao pilar.
Afinal não disseram grande coisa. Mas foi um bom dia. Melhor que o normal, pelo menos. Com o Jaquim ele é mais ele. Mais Zé, menos Zé do talho.
Foi pena afinal o Jaquim não querer ir ter com o pessoal ao café. Cansaço, disse. Fica para amanhã.
Na boa.

Este sítio. Daqui vê-se até muito longe, é o sítio mais alto.
Em noites destas o céu está cheio de estrelas e a terra também.
O que é que o Zé ou o Zé do talho ou o Zézinho importam aqui? Aqui é só ele e o cão.
- Anda cá, bicho. Larga essa merda!
E ele vem. Senta-se aos seus pés a arfar e a olhar em redor. Deixa-se afagar. Coçar na nuca. E claro, os dedos logo param o coçanço quando encontram uma carraça.
Ó, bicho dum raio!
O Zé saca dos cigarros e acende um, puxa umas passas.
E olha as estrelas derramadas por todo o lado. A planície negra com as suas luminosas carraças humanas. Algumas das terreolas ele sabe quais são. Sabe o seu nome. Já as estrelas brilham para ele anónimas. Nunca aprendeu constelações nem sabe onde fica Órion. Talvez por isso prefira as estrelas do céu às da terra.
O cão está quieto. Expectante. Sabe o que se segue. O horror da coisa. Mas sabe que ao cheiro feio e à pontada de dor se segue o alívio.
Vale a pena esperar o alívio.
E afinal até é rápido. O Zé já fez aquilo tanta vez. Abre-lhe o pêlo até encontrar a puta. E depois, zás, dá-lhe com o cigarro e ela cai, fica esperneando no chão. Nunca muito tempo, porque vem logo o sapato do Zé.
O Zé espanta-se sempre com a quantidade de sangue que as putas têm.
Puxa mais uma passa, mas o cigarro acaba por ter o mesmo destino da carraça.
Agora sim, há paz no mundo.
Espera e tudo se acalma. Ele, o cão, a noite.
Enche os pulmões de solidão e estrelas sem nome.
Adia o regresso a casa o mais que pode.
Não é nunca na cama que encontra sossego.

Sem comentários: