sábado, 24 de maio de 2008

33

Ai as mulheres.
No entanto o Manel do talho sai daquela casa com um peso na algibeira da camisa e uma secreta leveza na alma. A cólera é coisa que lhe vem e vai como um piscar de olhos. Tudo se há-de acabar. Não há-de ser preciso fazer nada. Se para que tudo se resolva é preciso fazer nada, então faça-se nada. Para ele está bem assim.
Aguenta-se ainda ali um momento, debaixo do Santo António de azulejos, porta trancada atrás de si, e chega a mão ao peito, tira a foto, só para a certeza.
Há-de queimá-la, promete.
Mas isso outro dia. Agora tem de a ver, de olhar muito para ela. Olhar muito para ele.
As mulheres, que sabem elas disto?
Todas aquelas mamas, todas aquelas coxas são só ardis. Boas carnes, mas caras. Esse preço conheçe-o ele, que o anda a pagar há tantos anos. A prisão do lar, mesmo com o benefício das cuecas, calças e camisas lavadas.
Que percebem as mulheres de tomates que é preciso aliviar? Da camaradagem? Da tropa? Dos bons tempos?
Com o Armando nunca houvera uma etiqueta de preço. Acontecera. E continuara a acontecer até a vida voltar ao civil. E cada um fora à sua vida.
E depois, um dia, no matadouro, lá estava ele. Viera. E nunca se tinha falado nisso. Não houvera promessas nem planos. E nem depois disso. Resolviam-se no mato, algures entre o matadouro e a vila, uns olivais, uns barrancos. Às vezes até a chover ou com um frio que desafiava a tusa. Mas resolviam-se. E estava tudo bem assim. Não era preciso fazer nada.
Manel olha para a foto. O sorriso do Armando.
Que sabia ele, um homem do talho? Como havia de adivinhar?
Como havia de saber que durante esses anos de mato, todas as vezes que esvaziava os colhões, enchia o cu do Armando com poesia? E adivinhava lá ele que a poesia consegue matar de tristeza?
Saíra caro ao Armando, não ter um preço.
Agora há dias em que o Manel do talho quase se arrepende. De quê nem sabe bem. Mas arranja umas flores, vai ao cemitério e concede-se o paneleiro luxo de sentir saudades.
Os bons tempos.

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