sábado, 15 de novembro de 2008

43

Ele olha para os caixotes.
Estão ali numa aparente resignação, de quem sabe que não tem mais para ganhar na vida senão bolor. Jaquim sente-se derrotado logo à partida, só de olhar para eles.
Então é isto, tudo o que resta. Uma dúzia de caixotes, deixados para trás numa correria.
A mãe pensara que haveria tempo para voltar atrás, para os vir buscar. Cinco anos e nunca houvera tempo.
Jaquim puxa com o pé uma pedra para manter aberta a porta da arrecadação. Monta o banquinho do lado de fora. Em cima põe-lhe a tesoura, a fita-cola e os sacos plásticos. Os gatos, atraídos pelo barulhinho crocante dos sacos vêm cheira-los, não vá dar-se o caso de haver ali comida.
A madrinha deixou-o bem equipado. Ainda ele mal limpara as ramelas dos olhos e já ela o estava a chamar para comer. Tinha já uma sandes pronta num pires (manteiga, fiambre e queijo) e ao lado o leite com o ColaCao (ela ainda o conhece). À ponta da mesa estava aquele equipamento todo (tesoura e sacos e éteceteras), e ela estava vestida, pronta a sair.
- Vá, fica à vontade, filho, que eu tenho uns mandados.
E antes de arrefecer o leite, já ela tinha batido a porta e ido à vida.
Agora aqui está ele, com os caixotes.
O primeiro que puxa, com esforço, pesado como o raio, diz: COZINHA. Corta-lhe a fita-cola, abre-o, e não tarda a fechá-lo. Um dia pode ser que aquelas panelas lhe sirvam para alguma coisa. Quem sabe? Se alugar uma casa, se arranjar um emprego, se acreditar nesses planos todos...
O segundo diz: LIVROS. Este leva mais tempo a voltar a fechar. É que os livros chamam e pedem para ser abertos. Põe alguns de lado, dentro de um dos sacos plásticos (tão previdente, a madrinha) e volta a selar a tampa.
O terceiro diz: COISAS. E ele, sorrindo com a capacidade sintética da mãe, despacha a curiosidade com um rasgão decidido, mas detém-se subitamente quando abre as abas da caixa. O sorriso morre imediatamente. Aqui está o perigo, aquilo que ele se devia ter lembrado: que dentro de caixas de “coisas” há sempre coisas esquecidas capazes de nos fazer lembrar de outras coisas que seria melhor esquecer. Logo ao de cima, ainda dentro da transparente embalagem original, está o cisne. O estúpido cisne de cristal.

1 comentário:

Vampira Dea disse...

adorei seus micros contos.