segunda-feira, 14 de abril de 2008

30

Ela fica sentada, a menina Ivone, ouvindo o barulho que ele faz arredando caixas na arrecadação do quintal. Sentada à mesa, rodeada de bolos e a pensar em coisas que não se dizem.
É tarde para se livrar da vida pelas próprias mãos, como fez o Armando. Homem esperto. Mas se aguentou até agora, pouco mais há-de faltar.
Um dos gatos entra na cozinha, não sem primeiro se roçar na ombreira da porta, na perna de uma cadeira. Só depois acede a ser coçado debaixo do queixo. Vem refugiar-se da inusitada usurpação do seu território. Não que a cozinha lhe desagrade. Mas a esta hora o quintal é por direito seu. Está indignado. Mia. A menina Ivone entende que ele tem fome e, sem vontade de se levantar, pega numa das popias sobre a mesa, parte um pedacinho e estende-lho.
O gato só precisa de cheirar uma vez para perceber que aquilo é comida que não lhe interessa. Levanta o rabo ainda mais ofendido e, sem cerimónias, regressa ao quintal.
O instinto dos animais é uma coisa estranha e ela nunca o compreendeu. Mas fora o fascínio. Um pitada de vaidade. E talvez inocência. Sim, talvez. Se deixara que o miúdo lhe chupasse os mamilos fora porque gostara de se imaginar mamã. Como se a sesta fosse uma brincadeira de faz-de-conta. E havia qualquer coisa de certo naquilo. Ela enrolava-se à volta dele e havia paz. As brincadeiras dele eram tão selvagens… Como são sempre as brincadeiras dos miúdos, mas chegava à hora da sesta e ele ainda tinha o coração a bater, das correrias e não acalmava. Por isso ela se deitara, abraçara-o e cantara uma cantiga.
Oliveirinha da serra.
E depois tinham cantado outra, juntos.
Toda a vida fui pastor.
Era um abraço quente, muito bom.
Toda a vida guardei gado.
Ao dezasseis anos ela já tinha os seios fartos. Aos cinco anos, com certeza deve ter sido o instinto que o guiou. Uma memória.
Tenho uma nódoa no peito, ai, ai…

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