Atira a carne. Segue-se a faca. E contra a madeira, em gestos precisos e seguros, corta dois bifes. Há sempre algum sangue que escorre, desperdiçado como vinho. O que resta da carne volta para o expositor. Cai entre as costeletas e os coelhos esfolados.
- Aqui tem. Faça bom proveito.
- Até amanhã, se Deus quiser.
A vontade de Deus repete até à eternidade estes dias, estes momentos. É na faca que ele encontra conforto. Com ela na mão não treme. O dia, passado entre carcaças no frigorífico e velhinhas ao balcão, centra-se na faca. Na força de partir ossos, no trepidar da trituradora e naquelas acções de desmembrar, desossar, rasgar, cortar, abrir.
A faca e a espingarda. É nelas que se apoia.
Teve primeiro uma pressão de ar, presente de Natal que pedira, implorara, para finalmente poder receber alguma coisa de jeito em vez das peúgas e pijamas do costume. Tinham ido logo os dois, ele e o Jaquim, lá para trás, para os valados, dar tiros em latas alinhadas em cima do muro, como os caubóis. A Dona Luísa não quisera dar uma ao Jaquim, mas atiravam à vez, não fazia mal. E ele era bom naquilo, ganhava sempre ao Jaquim. Que com a arma apoiada ao ombro descia-lhe uma calma rara. Focava-se tudo. Tudo se preparava para a explosão, o tiro certeiro. Um crescendo a terminar em êxtase. O Jaquim a gritar com ele. Ganda pontaria, pá! Ganda pontaria!
Até o pai, um dia, dissera:
- És bom nisso.
Ele não dissera nada, olhara para o chão, que é como responde quase sempre ao pai.
- Qualquer dia levo-te à caça, para aprenderes a dar uns tiros a valer, como um homem.
E depois viera aquela mão para o despentear e ele quase se desviara. Ele odiava aquela mão que ou lhe aterrava na cara para dizer, és um inútil, ou lhe pousava na cabeça dizendo, ainda és um miúdo.
segunda-feira, 10 de março de 2008
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