quarta-feira, 28 de maio de 2008

35

Porque é tudo silêncio.
Como o silêncio sério que se houve debaixo de água depois da ruidosa alegria do mergulho, quando a pressão nos ouvidos nos lembra que não somos dali e nos ameaça de morte.
O silêncio da borracha dos ténis nos corredores do hospital.
O silêncio dos travões do metro em hora de ponta.
O silêncio da campaínha a anunciar o fim de uma aula.
O grande, enorme e ensurdecedor silêncio da cantina do liceu.
Porque a única coisa que se ouve são lágrimas nocturnas que se imaginam a correr no quarto ao lado, soando muito mais alto que os carros e as motas acelerando avenida acima com ódio aos semáforos.

terça-feira, 27 de maio de 2008

34

- Lembras-te?
O Jaquim assente. Tanto se lembra que tem um assomo de felicidade ao ver que está tudo na mesma. A tábua dos mergulhos pregada à raiz da árvore. A ribeira correndo parada e a festa de insectos. O silêncio de insectos. O sol a ferir as sombras aqui e ali, verdejando a água.
O Zé sorri quando o Jaquim sorri.
(…nem tudo está perdido, nem tudo está perdido...)
- Ainda vens para aqui?
Às vezes. Mas é mais os miúdos. A água dá-me pela cintura. A gente agora vai mais é às piscinas da câmara. Mas é no Verão. E paga-se…
- Como é que a gente dava mergulhos dali?
- Dantes havia mais água.
- Ah, pois é… E à barragem, ainda vão?
- Ainda há quem vá. Mas como é o Açoreano que guia, a gente vai mais é às piscinas porque há gajas…
Riem-se.
- …e cerveja.
E aqui o Zé lembra-se de contar a história do acidente com a placa de sinalização. Como Vila Velha foi parar ao chão.
E voltam a rir-se. É bom rir. Faz de conta que o agora ainda é o dantes. Mas o Zé tem de tocar na distância e pergunta:
- Então e o pessoal lá de Lisboa, é porreiro?
O Jaquim encolhe os ombros.
É só isso que tem para dizer.

sábado, 24 de maio de 2008

33

Ai as mulheres.
No entanto o Manel do talho sai daquela casa com um peso na algibeira da camisa e uma secreta leveza na alma. A cólera é coisa que lhe vem e vai como um piscar de olhos. Tudo se há-de acabar. Não há-de ser preciso fazer nada. Se para que tudo se resolva é preciso fazer nada, então faça-se nada. Para ele está bem assim.
Aguenta-se ainda ali um momento, debaixo do Santo António de azulejos, porta trancada atrás de si, e chega a mão ao peito, tira a foto, só para a certeza.
Há-de queimá-la, promete.
Mas isso outro dia. Agora tem de a ver, de olhar muito para ela. Olhar muito para ele.
As mulheres, que sabem elas disto?
Todas aquelas mamas, todas aquelas coxas são só ardis. Boas carnes, mas caras. Esse preço conheçe-o ele, que o anda a pagar há tantos anos. A prisão do lar, mesmo com o benefício das cuecas, calças e camisas lavadas.
Que percebem as mulheres de tomates que é preciso aliviar? Da camaradagem? Da tropa? Dos bons tempos?
Com o Armando nunca houvera uma etiqueta de preço. Acontecera. E continuara a acontecer até a vida voltar ao civil. E cada um fora à sua vida.
E depois, um dia, no matadouro, lá estava ele. Viera. E nunca se tinha falado nisso. Não houvera promessas nem planos. E nem depois disso. Resolviam-se no mato, algures entre o matadouro e a vila, uns olivais, uns barrancos. Às vezes até a chover ou com um frio que desafiava a tusa. Mas resolviam-se. E estava tudo bem assim. Não era preciso fazer nada.
Manel olha para a foto. O sorriso do Armando.
Que sabia ele, um homem do talho? Como havia de adivinhar?
Como havia de saber que durante esses anos de mato, todas as vezes que esvaziava os colhões, enchia o cu do Armando com poesia? E adivinhava lá ele que a poesia consegue matar de tristeza?
Saíra caro ao Armando, não ter um preço.
Agora há dias em que o Manel do talho quase se arrepende. De quê nem sabe bem. Mas arranja umas flores, vai ao cemitério e concede-se o paneleiro luxo de sentir saudades.
Os bons tempos.