sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

17

A partir de certa altura ele tinha começado a associar a menina Ivone à bruxa da história da casinha de chocolate. Ele e o Zé eram como Hansel e Gretel, tentados por todo o tipo de guloseimas e forçados a comer até os estômagos doerem. Algum dia ainda iriam parar ao forno da madrinha, que estava sempre aceso.
A mesa transborda de bolos, pãezinhos, queijos, doces.
- Serve-te, filho, que deves trazer fome. Olha, tens aqui popias.
Ele sabe que não adianta resistir. Aquilo é uma ordem.
Mas se há algo de delicioso nisto é ver que nada mudou por aqui. Aqui sim há algo de familiar, de conhecido, de casa. Não fosse a mudança de perspectiva e tudo seria igual. Agora a menina Ivone é mais pequena que ele.
Mas não é só isso. Em quatro anos ele cresceu mais do que em altura e vê mais coisas. Sentado de novo a esta mesa, ele, que se sente já outro, vê agora claramente que aquela proliferação de comida revela apenas um grande vazio. E percebe porque é que a bruxa precisa de atrair as criançinhas, porque é que a menina Ivone come vivo quem lhe entra porta dentro.
Desde que ele chegou, ela ainda não se calou. Conduz as operações domésticas com irrelevantes comentários sobre tudo o que faz. Mas o tagarelar constante não cala o silêncio que ocupa esta casa e que sempre esteve aqui, sim, mas que só agora ele ouve. É um silêncio que passa as paredes, vem de todo o lado e pode instalar-se seja onde for, a qualquer momento, como um bolor.

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